O Começo Depois do Fim
Capítulo 411: O Sabor da Mana
Cecilia
Minhas entranhas ferveram de náusea quando o tempus warp nos devolveu ao Taegrin Caelum. Agora, de alguma forma teria que encarar Agrona e explicar o fracasso. O Legado havia sido derrotado por uma Foice comum.
Draneeve estava nos esperando com vários atendentes. O mago meio louco de cabelos carmesins curvou-se profundamente quando desci, de braços dados com Nico, da plataforma de recepção. “Bem-vindos de volta, Foice Nico e senhora Cecilia. O Alto Soberano está esperando por você.”
Apesar da exaustão profunda que havia se estabelecido sobre mim, exigindo um dia inteiro de descanso antes que pudesse enfrentar o tempus warp, sabia que não havia como escapar da convocação.
Nico também. “Talvez ele possa ajudá-lo a entender o que aconteceu em Aedelgard?” perguntou, me consolando.
Na minha vida anterior, meus possuidores, cientistas e especialistas em otimização de ki que me designaram não entenderam o que eu era — não de verdade. Mesmo o nome que me deram, “o Legado”, parecia ter nascido de mitos ou lendas, um termo que não era de invenção própria deles.
Mas Agrona, ele me entendeu. Ele viu além da sua percepção, e fazendo isso ganhou o conhecimento inacessível aos outros. Mas ele compartilhou pouco do que viu e precisava trabalhar mais na minha mente ainda humana. Progredimos devagar, e apenas quando ele decidiu que eu estava preparada para mais.
“Estou pronta.” falei, mais em resposta aos meus pensamentos do que à pergunta de Nico.
Draneeve girou para longe, o cabelo despenteado balançando. Os outros atendentes — imbuidores, curandeiros, sentinelas, qualquer um que pudesse ser necessário no meu retorno — se alinharam atrás de nós sem palavras, como um bando de servos seguindo o dono sem pensar.
Os meus olhos estavam cegos para os corredores que passavam pela fortaleza. Inconscientemente, olhei para o uniforme preto e carmesim de Draneeve, a visão dele me amarrando feito uma coleira para que os meus pés seguissem aonde ele levasse; os meus pensamentos, entretanto, estavam presos em Sehz-Clar, como se uma parte de mim não tivesse saído de lá. Queria entender por que a barreira resistiu a mim. Nenhuma outra mana que encontrei estava fora do meu controle, nem as partículas purificadas dentro dos corpos de outros seres vivos.
Ainda assim, de alguma forma, Seris encontrou uma maneira de ligar a mana de uma maneira tão completa que que resistiu até à minha influência. Não apenas isso, mas até a um bombardeio geral de várias frentes de milhares de magos poderosos não havia abalado nada. E então havia a própria Foice… já sabia que ela era perigosa. Todas as outras a consideravam com uma combinação cautelosa de respeito e medo. Agora, entendi o porquê.
Com toda a minha força, sabia que poderia ter dominado a técnica do vazio de mana que ela usou. Contudo, não estava no poder total e, portanto, permiti que ela me sobrecarregasse e me empurrasse de volta. Pelo menos eliminei o seu retentor, pensei. Todavia, foi uma pequena vitória, e não tinha orgulho ou prazer dela.
Draneeve se afastou no topo de uma escada que levava aos níveis mais baixos de pesquisa. Nico as observava apreensivo, que nem uma criança com medo do escuro. Quis perguntar a ele o que estava errado, mas depois voltei a visão aos presentes. Não, poderia perguntar quando estivéssemos a sós. Não queria chamar a atenção para o desconforto dele, e lembrando do núcleo de mana que ele escondia, somei dois mais dois.
“O Alto-Soberano verá vocês onde a fênix descansa.” disse Draneeve, a voz grave e olhos disparados desconfortáveis.
“O que isso quer dizer?” perguntei, confusa com a dramatização desnecessária.
“Sei o caminho,” respondeu Nico. “Você está dispensado, Draneeve.”
Ele pegou o meu braço e me levou às escadas. Olhei por cima do ombro uma última vez, franzindo a testa para o pessoal, porém não obtive mais respostas deles.
“Era uma mensagem,” falou ele com a voz muito baixa após um momento, quase sussurrando. “Agrona sabe que encontrei ela. Ele… pode até saber do núcleo que peguei.”
“Oh, encontrou quem?”
“Uma prisioneira dele, uma asura; uma fênix. Depois que eu estava… depois que você me curou.”
As escadas eram estreitas o suficiente para que fosse desconfortável caminhar lado a lado, então desacelerei para atrás de Nico. Quanto mais baixo íamos, mais escuras ficavam elas, até que os degraus de pedra negra eram quase indistinguíveis das sombras. “Por que importaria que você encontrasse essa fênix? Aconteceu alguma coisa?” questionei depois de um minuto.
Os passos dele se atrapalharam, e ele começou a se virar para olhar para mim. O que quer que estivesse pensando, no entanto, logo deixou de lado e retomou a descida lenta. “Não.”
Soltei uma risadinha, mas parei quando a escuridão engoliu o som. “Não vejo o problema, Nico.”
“Só… não diga nada do núcleo, certo? Mesmo que ele saiba que peguei, não admita que você sabe.”
“Mas eu poderia…”
Ele parou de vez neste momento, e quase bati nas costas dele. “Por favor.”
“Tudo bem,” respondi, parando depois de tentar estender a mão para pôr no topo da cabeça dele. Tais pequenos atos de intimidade ainda me davam náuseas horríveis e dolorosas que não dava para escapar. Maldito corpo, pensei, zangada de repente. “Mas você não deve temê-lo tanto. Ele não é uma ameaça para você, e sim a chave para o nosso futuro.”
Os ombros dele ficaram rígidos e ele se fechou de leve, fazendo com que eu mordesse a língua. A culpa e o arrependimento ofuscaram a minha raiva de imediato. Sabia que as palavras se Seris o abalaram ao ponto de se enraizar na mente dele no momento em que ela proferiu a podre mentira de que Agrona não tinha o poder de nos enviar de volta para as nossas vidas.
Porém, o que vi quando ele se virou para olhar para mim foi um sorriso, e nos olhos dele vi somente a sua confiança e amor por mim. Apesar das provações que enfrentamos, pelo menos sempre soube que estaria lá.
Voltamos a nos mover, continuando a lenta descida pelas escadas sinuosas em silêncio. Não demorou muito para que as vozes começassem a chegar até nós de algum lugar abaixo. Ele parou de novo, desta vez levantando a mão para sugerir que eu não fizesse barulho. As vozes eram de Viessa e Melzri.
“… Nos tratando como gente comum. É um absurdo.” dizia Melzri, irritada.
“Temos sorte de estarmos vivos, irmã,” respondeu Viessa. As palavras pareciam rastejar ao longo da pedra negra e fazer cócegas nos meus ouvidos. “Cuidado com o que fala.”
“Tch. O que ele está fazendo se sequestrando por dias e segurando os chifres das Assombrações, afinal? Por que não enviar os outros basiliscos para Sehz-Clar ou Dicathen? O seu tratado com Epheotus é há muito tempo poeira, juntamente com as florestas élficas, e ainda assim ele não fez nada.”
“As vidas dos asuras são longas,” contou Viessa, o tom com uma pitada de crítica. “O que, para nós, pode parecer uma eternidade, para o Alto-Soberano é um piscar de olhos. Talvez o que parece inação seja, na verdade, apenas paciência.”
“Então nosso fracasso dificilmente importaria, não é?”
Viessa tentou responder, entretanto, ele escolheu aquele momento para descer. Ambas ficaram em silêncio, os passos vacilando. Quando ele completou outro passo lento da escada e as avistou, parou, fingindo surpresa. “O que vocês duas estão fazendo aqui embaixo?”
“Não é da sua conta, irmãozinho,” Melzri retrucou, olhando desconfiada para nós dois. “Não preciso perguntar por que você está rastejando por esses degraus, é claro. Talvez o fracasso do Legado faça com que nós fiquemos fora de foco ou pelo menos nos faça parecer melhores em comparação. Eu deveria agradecer por isso, senhora Cecilia.”
“Chega,” disse ele com firmeza, antes de voltar a andar.
Eu não tinha energia para me importar com aquela infantilidade e o segui sem palavras, ansiosa devido ao inevitável confronto com Agrona, onde ele expressaria a sua decepção. Então poderíamos descobrir como derrubar a barreira de Seris, juntos.
Viessa se encolheu contra a parede interna para permitir que Nico passasse, mas a outra estava firmemente no meio da escada.
“Agrona em pessoa pediu nossa presença,” falou ele de modo rígido. “Gostariam de ser a razão de sermos detidos? Pode não ser uma marca negra muito escura no seu registro, mas com tudo que aconteceu, talvez seja o tabuleiro que quebra as costas do wogart.”
Ela bufou e se afastou. “Acho que não devo culpá-lo por sua urgência. Como Agrona ficou feliz em deixá-lo para morrer depois de sua exibição patética na Victoriad, tenho certeza de que você se sente compelido a provar que não é tão inútil.”
Os meus punhos se cerraram, e uma fúria de mana saltou em ação ao nosso redor, batendo elas contra a parede curva da escadaria. Gavinhas de mana negra se contorceram em torno de Viessa, lutando com o meu próprio poder, tentando tirá-lo e me forçar a ir embora. Peguei elas — o poder dela — e enrolei na garganta de Melzri, apertando.
“Pare com isso,” sibilou a Foice, impotente contra o próprio feitiço fora de controle.
Fogo do inferno ondulou e saltou sobre a pele de Melzri enquanto ela tentava queimar a minha influência, porém, suprimi o poder, segurando-o contra ela, não mais perigoso para mim do que fumaça no vento.
“Por muito tempo, você o tratou, uma Foice do Domínio Central, como um cachorro que você pode chutar para se sentir mais poderosa! Fale comigo ou ele dessa maneira de novo e eu arranco o seu núcleo pelo seu peito e bebo a mana enquanto a luz desaparece de seus olhos.”
Soltei o meu domínio sobre a mana e ambos os feitiços desapareceram. A mão de Melzri foi para a sua garganta, sufocada pelo vento vazio. Nenhuma palavra foi dita enquanto descíamos as escadas, e Nico ficou quieto até ter certeza de que elas estavam muito acima de nós.
“Você não deveria ter feito isso,” disse ele sem parar ou se virar para mim.
“Por quê?” perguntei, incrédula, soltando uma risada irônica. “As outras foices se tornam mais irrelevantes a cada dia que passa. Nessas horas, você deveria estar mais irritado. Por que não está?”
Ele pigarreou e assumiu uma carranca sombria de volta pelas escadas atrás de nós. “Como você disse, estão se tornando irrelevantes. Por que perder tempo com isso?”
Depois de mais um minuto ou dois, ele nos conduziu através de uma porta de pedra negra para uma grande sala retangular com um teto alto. Uma súbita e indesejável série de memórias inundou os meus pensamentos quando a visão do espaço estéril me lembrou dos muitos cômodos semelhantes que vi na última vida: lugares onde fui cortada, drogada e submetida a testes desumanos.
A vertigem fez meus joelhos tremerem, e além da doença da própria sensação, também havia a vergonha subjacente mais profunda que eu sentia por ser tão fraca. Apenas momentos atrás, me senti tão poderosa, e ainda assim aqui estava eu, pronta para entrar em posição fetal e vomitar ao ver algumas mesas, ferramentas e luzes brilhantes.
“Cecil, você está…”
“Bem. Estou.” murmurei, piscando rapidamente.
Ele deve ter entendido, porque ele mais uma vez passou o braço pelo meu e e me guiou pela sala até um longo corredor. As celas se alinhavam em ambos os lados, entretanto, não tive mente para inspecioná-las, e ele parecia saber aonde estávamos indo.
Quando aquele corredor terminou, Nico me levou para a esquerda em uma segunda série quase idêntica de celas, depois parou na frente da primeira, que ocupava uma pessoa viva.
A mulher do outro lado da barreira de proteção era bonita de verdade — ou havia sido antes do seu cativeiro. Aparentava ser jovem, mas passava um ar da idade, com olhos cansados da cor do fogo e uma tonalidade cinza esfumaçada na pele. Foi a maneira como seus ricos cabelos ruivos se aglomeraram na forma de penas que achei mais interessante e bonita, no entanto.
O seu poder estava suprimido, o pouco que ela ainda tinha, contudo ainda sentia a mana dela. Queimava sob a superfície, feito um carvão quente na brasa.
“O reencarnado retorna,” falou, a voz fraca e moribunda. Aqueles olhos brilhantes se fixaram no desconfortável Nico. Então, devagar, como se arrastados pela força de vontade, foram para mim. Vários batimentos pesados passaram antes que ela me reconhecesse. “Legado…”
Os meus lábios se separaram, uma pergunta se formando na minha língua, mas ele falou primeiro, nunca pousando o olhar nela por mais de um instante. “Ela é uma asura; uma fênix. Segundo ela, eles têm certa compreensão do renascimento e da reencarnação.”
Os lábios secos e rachados dela levantaram nos cantos. “Os dragões têm suas artes de éter, os panteões a arte da guerra. Titãs afirmarão entender a vida melhor do que todos os asuras, mas eles só entendem a criação, assim como os basiliscos conhecem a corrupção e a decadência. A vida, e todas as muitas facetas que a compõem, é o domínio das fênices.”
“Você está sendo rude, senhora Dawn.” Uma voz profunda soou logo atrás de mim, me fazendo girar de surpresa.
A visão de Agrona nunca deixava de me impressionar. A feições esculpidas como em estátuas, mantiveram uma uniformidade que acalmou os meus nervos, enquanto a série de correntes e joias adornando os chifres pegavam a luz e prendiam minha atenção.
Ao meu lado, Nico se afastou de Agrona e se curvou, o olhar permanecendo no chão, exceto por um único olhar jogado pelo corredor, à direita de onde viemos. Por instinto, soube que a cela de onde ele tirou o núcleo do dragão deveria estar naquela direção. Ele estava se perguntando se Agrona estava lá, com medo de ter sido descoberto.
“Alto-Soberano Agrona Vritra,” falei sem sorrir, algo raro. “Vim relatar a minha falha em retomar Sehz-Clar. O escudo provou ser mais robusto do que eu esperava, e no meu estado enfraquecido, a técnica do vazio de mana de Seris…”
Ele levantou a mão e estendeu um dedo, me deixando em silêncio na hora. Os olhos dele, duas piscinas insondáveis de vinho tinto rico, me atraíram. “É minha culpa, querida Cecil, por não ver a verdade das coisas antes.” Ele passou os dedos pelo meu cabelo, sorrindo carinhosamente para mim. “Senti a assinatura de Orlaeth na barreira, mas presumi que era projeto dele. Ainda pode ser o caso, mas percebi que a sua presença dentro da magia é muito mais literal.”
Alcancei a minha compreensão da tecnologia ainda muito limitada deste mundo, deixando as palavras dele confusas para mim.
Nico respirou assustado. “Você quer dizer… mas como isso poderia ser possível?”
Ele sorriu para Nico, porém não de forma agradável. “Olraeth era um gênio paranoico. Sem dúvida, ele construiu o escudo para se proteger de mim, e Seris de alguma forma o atraiu para uma armadilha. A verdade permanece, ele é, com certeza, a fonte de energia por trás do mecanismo.”
Ofeguei, enfim entendendo. “Como se ela o estivesse usando como… uma bateria?”
“Exatamente,” respondeu Nico, os olhos perdendo o foco enquanto olhava para algo que só ele podia ver e passava a mão no rosto. “Então, não era apenas sobre quanta mana você poderia controlar ou quão bom era o seu controle. Também tinha o fato de que a mana estava sendo controlada por um asura.”
“O que nos trouxe aqui,” declarou Agrona, pegando nos meus ombros e me virando para encarar a fênix, Dawn. “Se você deseja combater as artes da mana asura, primeiro deve provar a mana asura.”
A fênix apertou a mandíbula, um músculo se contraindo na bochecha. O olhar brilhante dela, firme, penetrou o meu. “Me toque, e queimo você de dentro para fora, Legado ou não.”
Ele riu sombriamente. “Senhora Dawn, você dificilmente está em posição de fazer ameaças. Se fosse tão cruel ou poderosa quanto gostaria que Cecilia acreditasse, talvez não tivesse passado tantos anos presa sob a minha fortaleza.”
Ela fez uma careta para Agrona, inchando o peito como se estivesse prestes a gritar. De repente, toda a energia pareceu deixá-la de uma vez, e ela cedeu contra as amarras e soltou um suspiro derrotado. “Faça o que quiser, então. A morte seria melhor do que apodrecer aqui por mais tempo.”
“Fico feliz por estarmos nos entendendo, por assim dizer,” disse ele, soltando os meus ombros e acenando para longe da parede de mana que a mantinha presa. “Fique feliz que você, na morte, será mais útil do que jamais foi na sua vida longa e desperdiçada.”
Ela virou a cabeça, sem mais olhar para nenhum de nós três.
Do canto do olho, peguei Nico mudando desconfortavelmente de um pé para o outro, uma expressão culpada no rosto dolorido. Aparentou ter notado isso no mesmo instante e forçou os traços a um vazio passivo.
“O-o que você quer que eu faça?” perguntei, olhando para Agrona.
“Pegue a mana dela. Toda. Até a última gota.”
Sabia o que ele pretendia antes de fazer a pergunta, e de alguma forma a resposta ainda conseguiu me pegar desprevenida, enviando um tremor pela minha espinha e braços.
Isso era diferente de qualquer outra coisa que já fiz. O que foi que pensei enquanto me ajoelhava sobre o corpo quebrado de Nico depois que Grey perfurou o núcleo dele?
Era muito cruel tirar a magia de alguém depois que ela se alegrasse com o poder.
Não era apenas tirar uma vida, ou mesmo tirar a magia da fênix. Eu estaria drenando a força vital dela — a mana que fortaleceu seu corpo e a manteve viva — feito uma sanguessuga enorme…
Olhei por um longo tempo para as linhas magras, mas bonitas, do rosto de Dawn, e me perguntei de repente quantos anos ela tinha. Poderia ter trinta, ou trezentos, ou até três mil anos de idade, pelo que conhecia.
Quanto da vida se pode viver com tanto tempo? E, no entanto, aqui estava ela, amarrada e impotente. A sua longa vida se resumiu a este momento final de miséria e desesperança. Era mesmo cruel que ela soubesse que seria seu poder usado contra os inimigos de Agrona. Se o plano dele funcionasse, claro.
Todavia, não deixei que essas reflexões se voltassem muito para dentro. Não analisei meu próprio lugar nesta crueldade, só estava fazendo o que tinha que fazer para recuperar minha vida real. Um dia, acordaria na Terra, no meu próprio corpo com Nico ao lado, e meu tempo neste mundo pareceria nada mais do que um sonho, assim como Seris havia dito…
Agrona se mexeu, um movimento sutil que expressou em voz alta sua impaciência, e dei um passo em direção à fênix.
Ela não olhou para mim quando comecei.
Embora sua mana estivesse suprimida, as partículas ainda estavam grandes na forma física. Enquanto o corpo de um humano precisava de sangue e oxigênio, o asura também precisava de mana, e pude vê-la imbuindo cada parte dela. A dureza dos ossos, a força dos músculos, a durabilidade da carne, até os impulsos elétricos da mente: tudo isso exigia mana para operar do jeito certo.
O que significava que ainda havia uma quantidade bastante significativa de mana infundindo seu corpo.
Estendi a mão para aquela mana, cautelosa no início. Não era um feitiço simples de realocação de mana como usei contra Grey; não estava apenas tentando evacuar toda a mana em uma área, mas também trazer para o meu. Precisaria purificar a mana asura dentro do meu próprio núcleo para me ajustar a ela.
A mana dela atendeu ao meu chamado. Foi devagar no começo, apenas uma gota. Pude sentir como ela se conteve e tentou manter a mana, apesar de ter desistido de toda esperança. Foi instintivo, imaginei, como pressionar a mão em uma ferida sangrando depois de ver a primeira onda repentina de vermelho.
Talvez, se ela estivesse em melhores condições, menos enfraquecida pela longa prisão, eu não teria sido capaz de tomar a mana à força. Ou talvez tivesse sido mais difícil. Houve um momento de ida e volta conforme a minha vontade lutava contra a dela, então seu controle rachou, tornando as gotas em uma inundação.
O seu rosto caiu, toda a determinação saiu dela, e pensei que ela parecia quase serena…
Algo na mana mudou de repente. As imagens começaram a tocar em minha mente, pensamentos ou memórias carregadas junto com a mana; era uma vaga impressão da vida da fênix que vazou da mente dela. Vi um voo de enormes criaturas aladas, enormes corpos dracônicos cobertos com penas de um âmbar-alaranjado, longos pescoços graciosos terminando em bicos de ganchos ferozes e olhos laranja brilhantes procurando no horizonte pelos inimigos, os dragões.
Então estavam nas formas humanas, mas eram menos. O desacordo explodiu em gritos, ameaças, xingamentos e apelos que se misturaram na memória. Alguns desejavam ficar e lutar, outros fugiram e se juntaram aos Vritra no reino dos menores, e mais ainda foi implorar ao clã Indrath por perdão… Entretanto, quando um homem de cabelos laranja indisciplinados e olhos amarelos brilhantes levantou a mão, as muitas vozes ficaram em silêncio de uma só vez.
Então havia menos ainda, muito menos, e estavam em outro lugar. O fundo coalesceu quando a memória se concentrou nele: florestas selvagens e indomadas cheias de bestas de mana. De repente, uma mão no ombro dela; era daquele homem, só que com um sorriso triste no rosto…
As imagens passaram, se movendo cada vez mais rápido, dificultando a compreensão: túneis escuros e dias intermináveis de trabalho; pessoas estranhas e tatuadas se misturando entre os asuras; o crescimento lento de árvores altas, a casca cinza-prateada brilhando que nem aço na luz baixa de uma caverna subterrânea escondida, as folhas vermelhas e laranjas tremulando como chamas; uma criança, apenas um menino, correndo e rindo, seus olhos bicolores — um laranja ardente, o outro azul gelado —, cheio de alegria e admiração.
Um amor que não era meu aqueceu o meu coração e fez os meus próprios olhos nadarem de lágrimas…
O plano de fundo mudou de novo, e eu estava olhando para fora da gaiola da fênix. A mudança de quente para frio foi tão repentina, que me preocupei em quebrar. Na memória, Agrona olhou para trás, malévolo e com um sorriso cruel no rosto. “Mordain foi tolo em esperar que eu deixasse a sua mensageira simplesmente andar livre depois de ter visto tanto da minha terra e fortaleza. Ouvi muito sobre você, Dawn do clã Asclepius, e estou muito ansioso para testar os limites do seu estoicismo tão falado nos rumores.”
A fênix grunhiu, e a memória mudou, oscilando dentro e fora de foco enquanto eu experimentava dias, depois meses, depois anos de solidão, tédio, dor e arrependimento, tudo forçado em um punhado de segundos… e então acabou, as memórias foram jogadas para fora e a minha mente se acomodou em meu próprio corpo de novo.
Um rubor quente irradiou das minhas veias e núcleo quando a mana da asura se infiltrou em mim. A própria mana era pura, tanto quanto qualquer outra que já havia experimentado, entretanto se assemelhava a fogo. Me perguntei em um espaço desocupado na parte de trás do cérebro se era algum atributo inato da raça fênix, mas o resto da mente permaneceu focado na tarefa.
O suor estava descendo na testa, tanto pelo calor quanto pelo esforço. Mesmo quando entrou no meu núcleo, a mana parecia selvagem, como um animal que, se eu perdesse o foco, me jogaria e correria livre. Ou como se fosse me queimar por dentro, assim como disse que faria…
O pensamento me fez reprimir ainda mais. Apertei tanto os dentes que começaram a doer, e o meu núcleo logo se sentiu inchado. Esqueci tudo sobre as memórias e da ameaça e me concentrei em manter o controle. Mas, mesmo com o fluxo de mana acelerando, cada vez mais permanecia dentro do corpo da fênix um enorme reservatório difícil de envolver a mente.
Não, já tinha sofrido mais do que isso antes. Comparado com as explosões de ki que causaram estragos no meu corpo, isso não era nada.
“Está começando a sentir, não está?” perguntou ela, sussurrando palavras ofegantes e quase inaudíveis. Apesar da pele pálida e todo o fogo dos olhos apagados, os lábios incolores ainda conseguiram formar um sorriso irônico. “Seu espírito pode levar seu potencial de uma vida para a outra, Legado, mas você ainda está envolta em pele e ossos élficos fracos. Como a galinha-d’água que engoliu o núcleo do wyvern, você vai… queimar…”
Nico estava inquieto com as mãos apertadas e soltas, diferente de Agrona, imóvel e calmo. Se ele tinha alguma preocupação de que a fênix pudesse estar certa, ele não mostrou.
Ele nunca deixaria isso acontecer, falei a mim mesma. Ainda assim… quanto mais eu absorvia, mais difícil era contê-la e mais doía. A pressão estava se acumulando em cada parte de mim, de modo que me sentia como um balão cheio demais prestes a explodir…
Um tremor doloroso sacudiu meu núcleo, fazendo com que eu soltasse um suspiro involuntário de agonia.
“Cecilia!” exclamou Nico, estendendo a mão a mim.
A de Agrona agarrou o pulso dele. “Não interfira.”
Fechei os olhos, afastando essas distrações. Agrona disse que eu precisava “provar” a mana para absorver tudo. Havia mais do que apenas isso, no entanto. Tinha que haver. Simplesmente tomar a mana não iria me ajudar a contornar o escudo, pois…
Meus olhos se abriram.
Precisava compreender.
Mana era apenas mana, isso eu sabia. Ela assumia os atributos de fogo, água, terra ou ar, dependendo do estímulo ambiental, e poderia então ser moldada em atributos desviantes por um mago talentoso. Além da pureza, algo determinado pela clareza do núcleo, a utilizada por um mago era idêntica a qualquer outra. Da mesma forma, a mana que eu estava puxando da fênix não deveria ser diferente, e ainda assim…
O físico superior exigia mana para funcionar, ao contrário de um corpo humano ou élfico, e isso significava que o núcleo, as veias e os canais deviam também estar estruturados de maneira diferente para que a mana circulasse constante e automaticamente.
Esse ciclo de mana de alguma forma a torna mais forte ou mais pura? Me perguntei, feliz pela minha mente ter um quebra-cabeça para trabalhar, o que tirou a tensão do meu corpo.
Uma espessa corrente de partículas dela — a maioria pura, embora misturada com alguma mana atmosférica recém-absorvida que mantinha a tonalidade natural — saía da fênix e era atraída pelas minhas veias de mana, fazendo-nos brilhar com uma luz laranja-esbranquiçada brilhante.
Poderia ser ambos — mas também poderia estar mais em sintonia com o corpo da asura… como tipos sanguíneos em um humano!
Fiz essa conexão final com um suspiro agudo. “Fênix, basiliscos, dragões… a forma da mana pura mudou ao longo dos tempos, não foi?”
Dirigi a pergunta a Dawn, então percebi que ela estava muito longe para responder. Sua pele, agora mais azul do que cinza, havia se apertado de forma não natural sobre o corpo dela, e sob ela os músculos se atrofiaram e encolheram. O laranja havia escorrido dos seus olhos, deixando-os com uma cor turva e opaca.
“É essa mudança evolutiva que alimentou o desvio nas nossas artes de mana.” respondeu Agrona.
Um súbito pico de dor do meu núcleo me fez arquear as costas, e percebi que estava no fim da capacidade de continuar absorvendo a mana da fênix. Na mesma hora diminuí o meu domínio do pouco de mana que restava para ela, entretanto, uma mão forte agarrou meu cotovelo dolorosamente.
“Não. Você deve absorver tudo.” disse ele, firme.
Encontrei o olho dele, tentando ler quaisquer pensamentos ou emoções estranhas que brilhassem de volta para mim; falhei. “E-eu não posso, meu núcleo está…”
Então, experimentei um segundo momento de realização.
Todo o corpo de Dawn estava cheio de mana, e asuras tinham que circulá-la o tempo todo. Eu não tinha os atributos físicos que tornavam isso possível para eles, porém possuía outra coisa ainda melhor.
Com um único pensamento, mana saiu do meu núcleo. Em vez de ser libertada do meu corpo ou focada num feitiço, a guiei através dos canais em todos os membros e órgãos, focando no fortalecimento do meu corpo. Em vez de parar por aí, como a maioria dos atacantes faria, guiei a mana para continuar se movendo de uma parte para a outra e, eventualmente, de volta ao meu núcleo.
Logo, meu corpo inteiro foi infundido com a mana. Isso, por sua vez, aliviou a pressão no meu núcleo e me permitiu absorver as últimas partículas da casca fria e sem vida da fênix.
Observei onde a mana da fênix e a minha se misturaram, se curvando em torno uma da outra feito chamas. Apesar de a dela ter se mostrado muito quente e estranha no início, percebi que já havia me aclimatado a ela. A tornei minha. Tinha certeza absoluta de que, se enfrentasse uma fênix, não teria mais problemas em me defender contra seus feitiços.
Esse pensamento trouxe uma carranca ao meu rosto, e olhei para Agrona. Atrás dele, Nico estava me olhando com cuidado, todo o corpo tenso que nem uma mola comprimida.
Agrona estava sorrindo, sorrindo para mim com orgulho. “Muito bem, Cecil.”
“Será o suficiente?” perguntei, pensando em Seris e no seu maldito escudo. “Eu sinto a mana fênix. Já a levei ao meu corpo e o tornei minha. Mas o escudo… esse insight será suficiente contra a mana do basilisco?”
Nico, aparentemente, não tinha a preocupação que eu tinha. “O Soberano Kiros ainda está preso? Cecilia poderia…”
“Não,” respondeu o basílico com firmeza, o rosto frio. Então, mais suave, deixou uma sombra do sorriso retornar e respondeu. “Não, não será necessário. Posso ter outros usos para ele. Uma única compreensão de mana asura bastará.”
Nico pegou o meu olhar por trás de Agrona, sem fazer outro movimento além de uma leve dilatação nos olhos. Era o suficiente para comunicar os pensamentos dele.
“Tem outra coisa,” falei, corando com o poder passando por mim como uma tempestade de fogo. “Vi outros asuras. Em Dicathen, nas Clareiras das Bestas.”
As sobrancelhas de Agrona se ergueram enquanto ele considerava o cadáver murchado da fênix. “Interessante. Então, senhora Dawn, todos esses anos protegendo Mordain e você o entrega quando a vida te deixa. Trágico.” Para mim, ele disse: “Talvez, depois de ter eliminado a ameaça boba que Seris e a sua ‘rebelião’ representam, você possa afiar as garras em um inimigo real, querida Cecil.”