O Começo Depois do Fim
Capítulo 419: Um dos Meus
Caera Denoir
Nossa base de operações em Sandaerene não continha todo o charme e beleza da propriedade de Seris em Aedelgard. A Foice havia comandado uma das instalações de pesquisa do Soberano para que usássemos como centro de comando, e havia algo no prédio limpo e funcional que me dava calafrios o tempo todo. Não se via nada além de metal gelado e luzes brancas ainda mais frias.
A grade de piso emitia um tom sombrio e indiferente conforme eu marchava pelo corredor em direção à câmara central de reuniões, onde realizávamos as conferências diárias. A porta, também de metal gelado, sentiu a minha assinatura de mana quando me aproximei e se abriu com um ruído maçante.
O interior da sala não era melhor do que o exterior. A mesa do centro se assemelhava mais a um balcão de laboratório do que qualquer outra coisa, e as cadeiras em torno dela eram desconfortáveis de propósito. Painéis cristalinos de visualização estavam alinhados na parede de trás, a transmissão principal do Domínio Central reproduzida na tela do meio, enquanto as telas menores à esquerda e à direita mostraram vários locais. Reconheci a câmara da bateria e a cela de contenção do Soberano Orlaeth em uma tela e uma panorâmica em movimento da cidade de Rosaere em outra.
“Chegou cedo.”
“Você está fora da cama,” respondi, me virando pro Cylrit sentado em um banco contra a parede à minha esquerda, a cabeça apoiada nela. “Você não deveria estar.”
Ele esfregou uma mão na lateral de sua pálida bochecha acinzentada, arranhando a barba que crescia ali. “Se eu deitar na cama por mais tempo, posso realmente morrer.”
Eu revirei os olhos. “Todos os homens são mesmo bebês, não são? Até mesmo Retentores.”
Suas sobrancelhas se ergueram um pouco. “Ah, disso eu não sei. Acho que me recuperei bastante bem, considerando que meu núcleo quase foi destruído pelo Legado.”
Nós nos viramos para uma porta na parede oposta da sala, sentindo uma poderosa assinatura de mana se aproximando. Ela deslizou para o lado com o mesmo barulho, e Seris entrou. Ele se levantou para saudá-la, e eu segui o exemplo.
Seris assentiu para nós. “Cylrit, não tenho uso para um Retentor que não pode seguir ordens. Você deve permanecer em repouso até que os curandeiros estejam convencidos de que seu núcleo não sofreu danos duradouros.”
Olhei com atenção para a Foice, tentando ler sua expressão, tom e linguagem corporal. O nosso conflito com o Alto Soberano e suas forças não estava indo tão bem quanto esperávamos, e eu tinha certeza de que o estresse das recentes perdas deve ter pesado sobre ela; ela, contudo, não deu nenhum sinal externo.
“Perdoe a minha insolência, Foice Seris”, disse ele, afundando no banco, “mas o doutor Xanys me liberou não faz mais que trinta minutos.”
Seris deu a volta na mesa para entrar na frente das telas, ficando fora do alcance do campo telepático. A transmissão estava mostrando uma longa fila de homens e mulheres marchando acorrentados e com mordaças de metal presas nas bocas. “O sangue nomeado Akula, da Truacia.”
O sangue nomeado Akula fazia parte da operação de contrabando da Truacia, movendo prata das suas minas e armamentos trazidos de Vechor.
“Ninguém do sangue deles foi designado para o carregamento que perdemos,” falou Cylrit, observando a tela com uma expressão amarga. “É possível que eles tenham se atrapalhado, mas é igualmente possível que alguém tenha os entregado.”
Fiquei quieta, reconhecendo a culpa que sentia sem me afundar nela.
Fui eu quem os levou a isso. De certa forma, eu era responsável pelo que estava acontecendo com eles agora. Mas não podia arcar com a culpa pessoal; era uma guerra. Haveria sofrimento e perda de ambos os lados. Ainda assim, quando a mais jovem Akula, uma garota com menos de onze anos, passou pelo artefato de gravação com lágrimas escorrendo por suas bochechas vermelhas brilhantes, tive que desviar o olhar.
Seris assistiu refletindo, sabendo que seriam executados. Mesmo quando os outros começaram a chegar na nossa sala em dois e três, depois em grupos maiores, até que estivesse cheia de analistas, operadores, imbuidores e comandantes, ela manteve os olhos na transmissão. Morria logo a conversa que se repetia a cada nova chegada, quando as pessoas cumprimentavam umas às outras.
Somente quando todos chegaram, ela virou as costas para a transmissão. Atrás dela, todos nós observávamos os carrinhos carregando os prisioneiros se afastando do artefato de gravação.
“Relatórios?”
No instante de hesitação que se seguiu, entrei em cena. “Maylis, a matrona Tremblay, entrou em contato e confirmou que os nossos ativos de alto valor em Aramoor foram realocados com sucesso,” Todos os olhos se voltaram para mim, alguns cautelosos, outros esperançosos. “Foi por pouco, e perdemos vários magos no conflito contra a Retentora Mawar, mas até agora parece que as identidades daqueles presentes não foram comprometidas.”
“As forças do Alto-Soberano estão ficando mais agressivas,” disse um dos nossos comandantes de campo. “E não apenas contra nós: elas estão usando a violência contra o povo para virar a opinião pública a favor delas.”
“Acreditamos que estão rastreando viagens entre domínios, pelo menos entre os altos-sangues.” Afirmou um engenheiro do alto-sangue Redwater.
“Como?” Perguntou outra pessoa, não sabia quem era dentro da sala lotada.
“Ainda não tenho certeza,” admitiu o engenheiro. “Mas vimos tantos movimentos reativos para ativos de grande valor que estamos confiantes de estão.”
Houve alguns murmúrios nessa proclamação, mas desapareceram depois de apenas alguns segundos.
“Os nossos planos para o próximo ataque ao escudo estão em vigor?” Perguntou Seris, examinando a sala em busca das várias pessoas envolvidas naquele projeto.
Uma imbuidora do alto-sangue Ainsworth pigarreou. “Apesar deste recente revés, o nosso sangue fará a sua parte. Recebi uma mensagem do alto-lorde esta manhã confirmando o nosso compromisso com o seu… Plano.”
A cadência hesitante da imbuidora sugeria que ela não estava exatamente entusiasmada com o que Seris tinha lhes pedido para fazerem, mas fiquei bastante surpresa por eles terem concordado em seguir com isso, em especial depois que Hector quase perdeu a vida para Mawar. Ele era um homem orgulhoso, no entanto, e tais acontecimentos tendiam a quebrar a vontade de uma pessoa ou reforçá-la. Estava claro que, com ele, foi a segunda opção.
“As alterações necessárias à propriedade foram concluídas,” acrescentou outro engenheiro. “Testar a conectividade mais ampla é… Difícil, claro, mas se o alto-sangue Ainsworth seguir adiante, estamos confiantes no nosso trabalho.”
A imbuidora ergueu a cabeça de forma arrogante e olhou para o engenheiro. “Faremos a nossa parte mesmo que isso nos leve ao mesmo destino que o sangue nomeado Akula, aparentemente.”
Apesar da crescente tensão, a conversa mudou de rumo, aprimorando uma série de detalhes técnicos que estavam fora do escopo do meu papel. Embora tenha feito o meu melhor para permanecer atenta, muitos furos me escaparam.
Uma das portas se abriu. Muitos olharam para quem chegou tão tarde, mas o fluxo da conversa não parou. Vasculhando pela sala, Wolfrum do alto-sangue Redwater congelou sob tantos olhares, parecendo um rocavíde assustado. Quando me viu, parte da tensão o deixou, e ele seguiu a parede até onde eu estava.
Trocamos acenos de cabeça silenciosos, então voltamos a atenção à conversa, que enfim estava se afastando do tópico anterior.
“Houve cinco descensões registradas dentro do escudo na última semana,” disse o chefe da Associação dos Ascendentes em Aedelgard, Anvald do sangue nomeado Torpor. Era um homem careca de ombros largos e um olhar severo. “Foram dezesseis ascendentes no total. Todos foram entrevistados, registrados e liberados para além do escudo em Rosaere. Ninguém estava operando com o propósito expresso de alcançar Sehz-Clar.”
Os poucos portais de descensão na metade ocidental de Sehz-Clar eram mantidos sob forte guarda. Seris monitorava o tráfego deles desde antes mesmo do escudo subir, e continuamos a fazer isso para garantir que Agrona não estivesse tentando pôr agentes no domínio. Era possível destruí-los, porém, ela disse que até que possuíssem provas de que ele poderia os usar, não estava disposta a quebrar nada que não pudesse reconstruir.
Depois de tudo o que vi enquanto me aventurava com Grey, me senti confiante de que um punhado de portais de descensão não importaria para o futuro das Relictombs, mas não argumentei o ponto. Era quase impossível atingir um portal de descensão específico fora do segundo nível, de qualquer maneira.
Algumas perguntas de acompanhamento foram feitas sobre os ascendentes. Em seguida, a reunião avançou.
“Precisamos reconsiderar as nossas linhas de abastecimento do leste de Sehz-Clar e Etril,” disse um dos analistas antes de relatar os alimentos que o nosso território estava consumindo em relação à quantidade produzida e contrabandeada. Era um problema preocupante. “Nesse ritmo, as cidades maiores estarão racionando a venda de alimentos para civis em três semanas. As cidades menores podem não sentir o impacto por mais seis semanas, mas dentro de dois meses, terá pessoas morrendo de fome nas ruas.”
“Há muitos olhos na costa,” afirmou um dos conselheiros estratégicos de Seris. “Os últimos quatro navios que tentaram atracar lá, de Vechor ou Etril, foram capturados e afundados. Tentamos expandir alguns dos túneis de pesquisa sob Rosaere, mas a mana necessária chamou a atenção, e tivemos que desmoronar tudo o que fizemos a fim de evitar que fossem usados para contornar os escudos.”
“O Domínio Central não está sendo observado tão de perto,” falei, a voz alta. A sala inteira se concentrou em mim. “Poderíamos encaminhar suprimentos para os nossos aliados lá sob o pretexto de altos-sangues estocando provisões, protegendo contra o potencial colapso econômico devido à rebelião em curso. Há um rio que nasce perto da fronteira entre o Domínio Central e Sehz-Clar, usado principalmente para o transporte de mercadorias de Sehz-Clar até Cargidan para distribuição pelo resto do domínio. Entretanto, também é um destino comum para recreação dos altos-sangues.”
“Será tão bem observado quanto a costa, não?” Rebateu o analista. “Levar recursos para o Domínio Central seria bastante fácil, mas trazê-los teria os mesmos problemas.”
Seris ficou pensativa por vários segundos, considerando os nossos argumentos. “A rede de túneis e laboratórios subterrâneos em torno de Sandaerene é extensa. Comecem a abrir uma linha reta de abastecimento até a base dos penhascos ao redor de Bocavritra. Contratem trabalhadores sem adornos para os últimos quinze quilômetros ou mais, isso limitará a detecção externa da escavação. O sistema de túneis deve sair do outro lado do mar do rio que a senhorita Caera mencionou.”
Várias pessoas correram para tomar nota do comando.
“Enquanto isso, providenciem a distribuição de comida recebida por todos os nossos aliados altos-sangues no Domínio Central, Vechor e Etril. Elaborem várias rotas para as linhas de abastecimento. Façam parecer que as mercadorias estão sendo deslocadas de um alto-sangue para outro. Precisaremos de vários altos-sangues não afiliados envolvidos também. Certifiquem-se de que não sejam apenas os nossos aliados que de repente estão estocando provisões.” Ela assumiu um sorriso quase invisível. “Deixem claro que as pessoas estão começando a questionar a capacidade de Agrona de acabar com essa rebelião.”
Mais uma vez, a conversa se dividiu em uma discussão de detalhes, com representantes de cada grupo fazendo perguntas e outros oferecendo sugestões para resolver novos problemas. Isso durou quase meia hora antes de Seris dispensar todos. Muitos correram para trabalhar de imediato nos detalhes discutidos. Também parti para a porta, mas Seris chamou a minha atenção, comunicando com clareza que nós, pelo menos, ainda não havíamos terminado.
Me posicionei ao lado de Cylrit, esperando que o resto saísse. A única outra pessoa que não fazia fila para sair por uma das portas era Wolfrum, um fato sobre o qual eu estava curiosa, porém esperava descobrir o motivo depois.
Assim que a última pessoa saiu e as portas se fecharam atrás deles, Seris relaxou um pouco. Ela olhou para Cylrit por um momento, ponderando antes de se concentrar em mim e Wolfrum. “As coisas estão chegando a um ponto crítico,” falou, encostando o quadril na mesa e cruzando os braços sobre o estômago. “As informações de dentro do Taegrin Caelum são de que Agrona tomou medidas para preparar o Legado para atacar o nosso escudo de novo.”
Cylrit se levantou devagar. “Estaremos prontos se ela o ultrapassar.”
Seris ergueu uma sobrancelha menos de dois centímetros. “Claro que sim. Mas também deve haver um contra-ataque. É hora de mudar a narrativa.”
Todos esperamos enquanto ela deixava a tensão aumentar. Wolfrum mordeu o lábio, contraindo os dedos de nervoso, mas Cylrit ainda estava como uma estátua.
“Demos a Grey tempo para colocar a sua casa em ordem,” disse ela, encontrando os meus olhos. “Agora, precisamos dele. Uma vitória decisiva, à vista de todos, onde Agrona não pode varrê-la para debaixo do tapete. E eu estou enviando vocês para recuperá-lo.”
“Para…” Me interrompi, olhando de maneira clara para Wolfrum.
Ela assentiu. “Está tudo bem, Caera. Wolfrum é confiável. Ele é um dos meus.”
Experimentei um momento de confusão, então senti as sobrancelhas se levantarem. “Outro protegido nascido Vritra?”
Ele sorriu, desajeitado. “A senhora Seris me ajudou quando todos desistiram de mim. Quando o meu sangue V-Vritra não se manifestou… Bem, eu devo muito a ela.”
“Por que não me contou?” Perguntei à minha mentora, sem saber como me sentia sobre essa revelação.
“Era essencial que a minha conexão com o sangue Redwater fosse mantida em segredo,” respondeu, sem indícios de desculpas ou mesmo reconhecimento no tom. “Apenas Cylrit estava ciente. Precisa de mais garantias?”
Me endireitei, de repente consciente de como ainda estava olhando para Wolfrum. Era difícil imaginar o menino antissocial de doer que eu conhecia, que se transformara no homem nervoso à minha frente, sendo orientado por Seris. Se ele tivesse passado pelo mesmo tipo de treinamento e preparação que tive, porém, teria muito mais do que jamais suspeitei. No mínimo, tinha uma força oculta que eu apreciava.
“Isso é bom”, falou depois de um momento, “porque ele vai com você para Dicathen.”
Ele empalideceu, “para o outro continente?”
“Enviei uma equipe à frente para preparar o meu tempus warp de longo alcance pessoal. Grey — Arthur — está na cidade subterrânea de Vildorial. Os anões foram fortemente divididos pela guerra em Dicathen, e a tensão lá ainda deve ser alta. Não esperem uma recepção calorosa. Se Arthur não estiver lá, podem falar com Virion Eralith, as Lanças Bairon Wykes, Varay Aurae, Mica Earthborn, ou qualquer clã anão que esteja no comando da própria cidade.”
Os olhos arregalados dele se voltaram para mim, a boca um pouco aberta. Parecia que o protegido alternativo de Seris estava se sentindo um pouco sobrecarregado.
“Preciso que Arthur — Grey — retorne a Alacrya logo,” continuou. “Ele está… Singularmente focado na proteção de sua família, e eu me preocupo que, agora que ele enfim voltou para casa, pode não estar ansioso para deixá-la de novo. Convençam-no.”
Apertei a mandíbula. “Claro, Foice Seris. Acredito nele…” Não pude deixar de me perguntar se isso era verdade, fazendo com que eu parasse. De imediato, acrescentei: “Acredito que ele fará o que é certo.”
Ela se afastou da mesa e se dirigiu para a mesma porta pela qual havia entrado. “Vamos lá, então. Vocês usarão um tempus warp à beira-mar, onde um membro do grupo adiantado vai encontrá-los… Se vale de algo, Caera, eu também confio nele.”
Wolfrum e eu seguimos Seris, deixando o silencioso e pensativo Cylrit para trás. O tempus warp primário do centro de pesquisa estava escondido entre vários postos e protegido por uma estação de guarda. Com uma palavra dela, o operador programou o dispositivo e deu um passo para trás.
“Lembrem-se do que fizemos os dicatheanos passarem quando chegar em Vildorial,” alertou ela enquanto avançávamos na frente do metal fosco do tempus warp. “Sejam pacientes com a hostilidade deles. Vocês descobrirão, dada uma chance, que não são o continente bárbaro e fracassado que Agrona os pintou. E acredito ser importante que eles passem a ver Alacrya não como o agressor deles, mas sim como uma vítima igual à conspiração dos asuras.”
“Entendo.” Respondi, e Wolfrum repetiu.
“Vão, então.”
O operador ativou o dispositivo, e eu senti a magia me segurar, me puxando pelo espaço. Em poucos segundos, aparecemos em um pequeno bunker. Uma jovem de armadura de couro verde-oliva pulou do banquinho em que estava descansando e nos saudou. O olhar dela se voltou para Wolfrum antes de mim.
“Senhorita Caera, o tempus warp de longo alcance está montado do outro lado do escudo. Sigam-me, por favor.”
Nós dois a seguimos, passando pela porta de aço, por um caminho rochoso íngreme que levava à costa, talvez a pouco menos de um quilômetro de distância e alguns metros abaixo. A base do escudo se curvava para baixo e afundava na areia e pedras de uma praia rochosa. A reconheci como o litoral noroeste de Sehz-Clar.
“Então, você tem sido peça-chave para a operação de Seris aqui, não é?”
Quando olhei para Wolfrum, ele respondeu com um sorriso rígido, e percebi que estava tentando jogar conversa fora. Além do breve encontro com o alto-lorde Frost e os outros, eu não o via há alguns anos, não desde que os meus pais adotivos pararam de me forçar a ir a festas com os outros adotados detentores do sangue Vritra. Quando crianças, o nosso relacionamento havia sido amigável, mas nunca formei laços fortes com nenhum dos outros do sangue.
“Eu concordo com o que ela está fazendo.” Respondi depois de um momento.
“Sim, mas… Ela confia em você, claramente. Você parece estar envolvida em toda a tomada de decisão dela.”
Ri, mas não tinha humor nisso. “Nem todas, pelo visto.”
“Você está… Com raiva.”
Mordi a língua, me sentindo culpada de imediato. Sabia muito bem o quão difícil a vida de Wolfrum foi e como ele tinha sido tratado pelos outros como nós. “Peço desculpas. Na verdade, não. Apenas… O seu relacionamento com ela… Me pegou de surpresa, só isso.”
As sobrancelhas dele se apertaram em uma expressão séria. “Ela é boa em compartimentar. É interessante, sabia?”
“Como assim?” Perguntei, pulando um degrau íngreme, seguindo com cuidado a soldada.
“A maneira como ela pensa, planeja e executa… Lições tiradas diretamente do Alto-Soberano. Mas ela está usando as próprias ferramentas dele contra ele. É… Quase poético.”
Parei e olhei por cima do ombro para ele, que havia ido para trás de mim quando a trilha descendo a encosta íngreme se estreitou. Tinha um olhar estranho, quase melancólico.
“Vamos lá, ainda resta um pouco de caminhada, e a nossa janela através do escudo está programada para…” Nossa guia sombreou os olhos com a mão e olhou para o sol. “Merda, apenas cerca de sete ou oito minutos. Dura apenas trinta segundos, então, precisamos nos apressar.”
Ela começou a correr pela encosta, vez ou outra deslizando sobre pedras soltas, ou saltando sobre quedas de vários metros. Corri atrás dela, ouvindo os passos de Wolfrum atrás de mim para ter certeza de que estava acompanhando. Ele nunca foi muito gracioso.
A colina rochosa despencou direto para um penhasco antes de se juntar à praia, e a guia nos levou a uma série de degraus íngremes de pedra cortados.
“Então, o que eu deveria esperar ao conhecer esse Ascendente Grey… Ou Lança Arthur Leywin de Dicathen. Parece que você o conhece bem.”
Quando recuei de maneira brusca, olhei para Wolfrum de novo. Ele estava me encarando, e havia uma intensidade em seus olhos que não combinavam com o tom dele.
“Ele é difícil de descrever,” disse, ficando desconfortável. “Você vai entender quando conhecê-lo.”
Percebi que esse desconforto estava se acumulando em mim quando descemos a encosta, mas, não entendendo o que sentia, empurrei isso para o fundo da minha mente. Refleti sobre tudo, como fui treinada para fazer, em busca de detalhes subconscientes que desencadearam o meu desconforto.
Escorreguei numa pedra solta e deslizei dois degraus. Plantei a mão para me estabilizar no momento em que o punho de Wolfrum se fechou em volta do meu. Algo prateado caiu da minha manga e desceu em espiral pelo penhasco, desaparecendo nos arbustos acidentados que ladeavam à beira da praia no fundo.
Eu xinguei.
“Parecia valioso.” Observou ele, me ajudando a me levantar.
“E era.” Murmurei, infeliz.
“Não há tempo para procurar,” disse a soldada, balançando a cabeça. “A menos que queira explicar à Foice Seris Vritra por que perdemos a nossa janela.”
Apenas concordei, e continuamos em silêncio por um minuto ou mais. “Eu estava pensando… Você está treinando para lutar com a Seris, certo?” Perguntei, olhando para ele por cima dos ombros e forçando um sorriso, quebrando o silêncio ao perceber o que estava me incomodando. “O seu equilíbrio está muito mais estável do que me lembro. Aquelas danças que todos fomos forçados a assistir… Você mudou. O nervosismo… É isso, não é? Um baile de máscaras?”
Ele deu de ombros, mas não perdeu um passo. “Não é tão diferente do seu papel com os Denoirs, é? As pessoas esperam que você seja alguma coisa, e ela te ensinou a mostrar o que querem ver. Se alguém pensa em mim, se lembra do desajeitado e aterrorizado menino de sangue Vritra que conseguia se envergonhar a cada momento. Eles esperam que eu seja apenas isso, então, convencê-los de que continuo igual tem sido muito fácil. Seris me ensinou que existe poder na subestimação.”
Soltei um suspiro, relaxando enquanto me lembrava de que ambos passamos pelo mesmo treinamento. De repente, fiquei feliz por ela ter o enviado e fiquei curiosa sobre o que ele era capaz. Quando abri a boca para perguntar sobre o treino dele, porém, fui cortada por outro xingamento da nossa guia.
A soldada saltou do último conjunto de degraus, caindo quatro metros e meio até a areia abaixo, onde pousou com um grunhido. Então ela estava de pé, correndo pela praia, acenando para nós. “Veem aquelas ranhuras? Está na hora. Já estamos atrasados!”
Linhas corriam pelo escudo na vertical. Fora dele, em um afloramento de rocha que quebrava a divisão de areia e água, várias pessoas estavam esperando por nós. Nossa guia estava chutando areia molhada, correndo pela praia em direção ao local onde as linhas convergiam para o chão.
Empoderando as pernas com mana, pulei do penhasco a seis metros do chão. Minhas botas afundaram na areia, e Wolfrum pousou ao meu lado um momento depois. Corremos, seguindo a soldada.
O escudo se separou com um zumbido baixo e elétrico, criando uma abertura de três metros de largura e cinco de altura.
Um flash de luz verde.
Um raio de mana ergueu a nossa guia e a jogou de volta para mim. Reagindo por puro instinto, a peguei, mas no segundo em que precisei fazer isso, vários outros feitiços foram disparados. Metade do grupo esperando além do escudo desabou quando balas de fogo e chuvas ácidas os pegaram de surpresa. Acabou antes mesmo de começar.
A jovem soldada estava se contorcendo nos meus braços, tentando se virar o suficiente para olhar por cima do ombro para mim. Seus olhos estavam arregalados, a respiração vindo em suspiros rápidos e rasos.
Os atacantes já estavam correndo para a brecha no escudo.
Wolfrum estava parado ao meu lado, quase me tocando. Mas não estava observando os magos que pararam na brecha, jogando para baixo o que aparentavam ser componentes de um artefato. Ele estava me observando.
“Seria melhor se você não revidasse. Preferimos levá-la ilesa.” Falou, a voz mudando por completo quando a intensidade nos seus olhos se transformou em uma confiança sombria.
“Sei que você está calculando as suas chances de vitória agora, mas…” Ele se expandiu, ficando mais alto e musculoso. Chifres de ônix brotaram de sua cabeça, curtos e afiados. “Me permita assegurar que uma batalha só pode resultar em sua lesão ou morte.”
Eu me afastei dele, ainda embalando a soldada nos braços. Uma mancha vermelha estava crescendo sobre seu lado esquerdo.
O sangue Vritra dele tinha se manifestado, mas ele o escondia, que nem eu.
Debaixo da abertura do escudo, os magos, cada um dos quais usava um emblema simbolizando um rio vermelho sinuoso, montaram um arco de hastes de metal preto. Bem acima deles, as ranhuras no escudo foram apagadas à medida que o prazo de trinta e dois segundos passou. Quando se foram, o escudo se flexionou ao redor do artefato. As duas forças entraram em conflito, emitindo um zumbido, mas a lacuna não se fechou.
Eu precisava de tempo para pensar. Não tinha como saber o quão forte Wolfrum era, e eu estava em desvantagem de sete para um, então eu não podia ter certeza dos resultados de uma luta. Tinha que entender mais sobre o que estavam tentando realizar. “Há quanto tempo você é um traidor?”
Ele estava me perseguindo devagar, mas fez uma pausa para levantar a pergunta. “Eu nunca fui da Seris, independentemente do que ela diz. Além disso, se você trair uma rebelião, isso não o torna leal?”
Um dos soldados Redwater correu com um par de algemas tilintando nas mãos. Wolfrum os pegou pela corrente, os segurando para que eu visse. Eram algemas de supressão de mana.
“É irônico, claro, que ela tenha me dado todas as ferramentas que eu precisava para espioná-la,” continuou ele, as sacudindo. “Todo mundo acha que ela é a inteligente, mas mesmo ela nunca suspeitou que o meu sangue se manifestou.”
“Barco vindo!” Gritou um dos magos Redwater. Ele estava de pé no topo do afloramento rochoso com uma luneta pressionada contra o olho. “Cinco minutos!”
Wolfrum deu um passo em minha direção. “Aqui, vamos colocar isso em você. Eu odiaria que fosse tentada a fazer algo estúpido quando a Foice Dragoth chegar.”
Pedindo desculpas em silêncio à soldada nos meus braços, a deixei cair.
Ele avançou contra mim, alcançando os meus pulsos, mas rolei para trás, puxando a espada do meu anel dimensional quando voltei a ficar de pé. Contudo, rápido, ele ainda estava bem em cima de mim. O seu punho desceu feito um porrete envolto em chamas negras para esmagar a lâmina. Girei, absorvendo a mudança de impulso do golpe dele para golpear em um arco a parte de trás das pernas dele.
Ele se lançou no ar, girando em uma elegante cambalhota para trás, e pousou a alguns metros de distância.
Senti os magos atrás começando a conjurar os seus feitiços.
“Por mais que revidar não seja a decisão certa, Caera, estou curioso para ver do que você é capaz,” afirmou ele com um ar de curiosidade confiante. “Seris tem tanta fé em você.”
Girando as algemas sobre a cabeça, ele as arremessou contra mim. Elas voaram que nem uma bola, girando e girando.
Firmei os pés o melhor que pude na areia, pronta para me esquivar ou desviar do lance selvagem.
O ar ao meu redor endureceu, congelando em um som ofuscante de vento escuro que me cegou e me conteve. Vento vazio, pensei fracamente enquanto as algemas, guiadas pela magia dele, se fechavam em torno dos meus pulsos antes de puxar as minhas mãos para frente.
A sensação de náusea de minha mana sendo contida encheu todas as células do meu corpo quando as algemas a trancaram dentro de mim.