O Começo Depois do Fim
Capítulo 407: Diga a Ele
Caera Denoir
“Relatório,” disse Seris, o tom dominante.
A minha mentora ficou mais séria e direta do que o habitual desde a sua breve conversa com a Foice Nico e a estranha companheira dele, que usava o corpo de uma elfa, o Legado.
“O bombardeio em Rosaere começou,” respondeu Cylrit com uma precisão militar arrebatadora. “Estimamos vinte mil soldados agora, embora as forças ainda estejam sendo reunidas. O escudo está aguentando.”
“E o Legado?”
Os bonitos traços dele escureceram com o nome. “Ela até agora achou adequado comandar pela retaguarda.”
Uma carranca, quase imperceptível, franziu a testa de Seris. “Mais algo?”
“Uma frota de vinte navios a vapor deixou Dzianis esta manhã, indo para o sul,” Olhou ele pela janela aberta ao oceano cintilante ao longe. “Esperamos que cheguem a Bocavritra e Aedelgard.”
O olhar penetrante dela Seris se voltou para mim. “Sabemos se os Redwaters conseguiram concluir o plano que sugeriu?”
Tapeei um dos muitos pergaminhos de comunicação que ocupavam a grande mesa no centro da sala militar dela. “Wolfrum avisou na noite passada que marinheiros amigáveis haviam sido realocados com sucesso a Dzianis para ajudar a ‘preencher’ as tripulações dos navios a vapor.”
“Bom,” Assentiu com a cabeça. “Recebemos alguma confirmação adicional?”
Olhei para Cylrit, que negou. “Não.”
“Entendo,” falou com suavidade, juntando as unhas. Ao perceber, parou e se endireitou. “Então devo partir para Rosaere de imediato. Cylrit, fique e garanta que a bateria do escudo permaneça operacional. Caera, mude as nossas operações estratégicas para a cidade de Sandaerene. Você estará mais segura lá.”
Mordi o lábio, porém não falei os pensamentos que me vieram à mente.
As sobrancelhas dela se ergueram menos de um centímetro.
“Perdoe-me,” Comecei, ainda me agarrando à frase apropriada. “… Mas não tenho interesse em permanecer ‘segura‘. Eu não sou…”
“Dispensável,” disse, me surpreendendo. “Ninguém conhece a sua força melhor do que eu, Caera. Mas eu tenho soldados. O que me falta é uma abundância de crianças alto-sangues Vritras com profundo conhecimento tanto da política nobre quanto das Relictombs.”
Ela fez uma pausa, me dando a oportunidade de falar, entretanto, não podia responder. “Esta não é uma competição de poder e estratégia entre dois lados, onde a força da magia e das armas vencerão. Isto é uma revolução. Trata-se de remodelar o mundo para que funcione para as pessoas que nele vivem, em vez das divindades que simplesmente o usam. Mesmo que não seja o papel que você teria escolhido para si, a sua parte em tudo isso é guiar os seus colegas à compreensão.”
O meu olhar, para baixo e desfocado, viu os seus pés diminuir a nossa distância, e, gentil e firmemente com a mão, ela levantou o meu queixo. Que nem nas tantas outras vezes, pareceu me desnudar da frustração e medo.
“Nem eu posso prever tudo o que acontecer, mas tenho certeza de que quaisquer planos que eu faça exigem o seu sucesso. Do que adiantaria construir um mundo novo e não ter boas pessoas para cuidar dele?
Bem, você já arrancou muitos elogios meus por hoje. Faça os arranjos com os meus contatos em Sandaerene. Peça ajuda se necessário, caso contrário, continue a bagunçar fora de Sehz-Clar.”
Ela olhou para Cylrit, que lhe fez uma reverência superficial,
e saiu da sala para liderar a defesa principal em Rosaere.
Observei a sala militar, onde passei muitas, muitas horas desde que cheguei a Sehz-Clar. Era um espaço amplo e sem decoração na extremidade oeste do complexo de Seris com uma longa mesa oval e outras menores pressionadas ao acaso nas paredes. Arcos abertos levavam a uma ampla varanda virada ao ocidente de Aedelgard e a uma grande vista do Mar da Boca Vritra e além.
“Senhorita Caera, por favor, me avise se precisar de ajuda,”
Pouco antes de ele sair sob a abertura do arco mais distante, falei: “Acha que ela está bem?”
Ele parou e se virou, demorando um momento para chegar a uma resposta. “Ela não pensa em coisas como autocuidado e bem-estar. Para ela, é tudo sobre o plano.”
Não pude deixar de sorrir com a reverência decepcionada em seu tom. “É por isso que ela te tem, então? Para pensar nessas partes por ela?”
Nenhum lampejo de emoção quebrou a expressão estoica que ele sempre usava. “Talvez. Nós montamos vários artefatos de gravação ao redor de Rosaere. Se você não conseguir se acalmar, talvez poder ver o que está acontecendo alivie os seus pensamentos.” Então, como Seris, ele se foi.
Eu me perguntava como ele ficava tão calmo e se recuperava o tempo todo. Apesar de parecer um pouco jovem, ele foi o retentor dela por muitos anos. Juntos, lideraram as forças de Sehz-Clar contra a invasão vechoriana antes mesmo de eu nascer. Na maioria das ocasiões, ele aparentava ser tão equilibrado e confiante quanto ela. Às vezes, quando lutava por um resultado positivo, era ele quem eu tentava imitar. Já que era a minha mentora e uma Foice, Seris sempre esteve em outro patamar. Em contraste, a história dele era muito semelhante à minha, o que de certa forma fazia com que me sentisse mais acessível.
Mas nada será realizado pensando aqui, falei a mim mesma. Endireitando a postura, comecei a vasculhar os muitos mapas, missivas e comunicados, os classificando em pilhas apressadas para serem realocadas.
Parei de repente, irritada comigo mesma por esquecer que tinha uma equipe inteira de atendentes para me ajudar com este tipo de coisa.
Como se convocada pelo pensamento, uma mulher nova, Haella do alto-sangue Tremblay, prima de Maylis, apareceu na porta. “Ah, perdão, senhorita Caera. Vi a comandante Seris e o retentor Cylrit saindo e…”
“Não precisa se desculpar. Chame todos, na verdade. Estamos nos realocando.”
Depois de uma rápida reunião com o resto da nossa pequena comitiva — todos os indivíduos confiáveis que concordavam com a causa e possuíam talentos ou runas que ajudavam na distribuição das muitas missivas que enviávamos —, me retirei para os meus aposentos privados e comecei a guardar o que era meu.
Fiquei irritado com a ideia de me esconder em Sandaerene, uma cidade no centro próximo da metade oeste de Sehz-Clar, o mais longe possível de qualquer potencial combate. Entretanto, sabia que Seris estava certa. E, embora tivesse gostado de ficar em Aedelgard e ajudar a vigiar a bateria do escudo e o Soberano, era menos capaz que Cylrit.
Para ajudar a me acalmar e parar de duvidar dela, fiz o que ele sugeriu. Em uma parede da minha sala de estar, estava um cristal de projeção que me mantia informada das mensagens de Agrona ao povo de Alacrya. Com um pulso de mana, passei a sintonizá-lo para a assinatura de mana dos nossos artefatos de gravação.
Não demorei muito para localizar os artefatos mencionados.
A imagem mostrava a imponente curva do escudo dividindo a cidade de Rosaere em duas. O dispositivo parecia estar localizado em torno da avenida central da cidade, de frente ao exterior.
A imagem fez o meu pulso acelerar.
Do outro lado do escudo, várias centenas de grupos de batalha alinhados lançavam milhares de feitiços. Dúzias de disparos de cada elemento, feixes verdes, raios negros e mísseis brilhantes colidiam contra o escudo por segundo.
O artefato não retratava o som da batalha, contudo, dava para imaginar o colapso dos feitiços sendo o suficiente para sacudir as bases rochosas do continente.
Pelo que pude dizer, a barreira estava aguentando sem tensão.
Ajustei a sintonização de novo e me vi olhando quase a mesma imagem, todavia, de um ângulo mais alto e distante. Este ponto vantajoso me permitiu ver a profundidade dos inimigos — franzi a testa, percebendo que havia começado a chamar aqueles soldados alacryanos de “inimigos” sem nem perceber — e o campo de guerra muito distante, além das fronteiras orientais da cidade.
Mudar a sintonização pela segunda vez revelou uma visão aérea arrebatadora e apressada da cidade, formando um sorriso em mim. Achei os simples autômatos semelhantes a pássaros, um dos quais eu sabia que carregava este artefato, infinitamente encantadores. Eram uma invenção até que nova, de acordo com Seris, tendo sido pilotados na guerra contra Dicathen, mas nunca postos em uso em grande escala devido à dificuldade de criá-los.
Observei por algum tempo, esquecendo o que deveria estar fazendo. Seris havia reunido pouco mais de cinco mil soldados em Rosaere como uma salvaguarda caso os escudos fossem rompidos, os quais podiam ser vistos em toda a metade ocidental da cidade.
Tentei não pensar no quanto preferia estar com eles, mais perto da ação.
Um barulho semelhante ao de um trovão reverberando dentro de uma campânula rasgou o ar, tão alto que sacudiu o chão sob mim e fez a imagem projetada desfocar.
Estendi a mão à mesa próxima para me estabilizar. O barulho veio de novo, e o complexo tremeu ainda mais forte. Por um momento me preocupei que pudesse deslizar do penhasco para o mar.
Gritos vinham de uma dúzia de direções diferentes por toda a casa de Seris.
A minha mente girou, lutando para pensar nas reverberações, então estava soando mais uma vez, fazendo os meus dentes e olhos vibrarem.
Que abismo de chatice seria…
Pensei de uma vez só: os escudos.
Os escudos estavam sob ataque.
Me movendo com uma corrida cansada, bati a porta dos meus aposentos e, na escada, subi três degraus de cada vez. Já lá em cima, descansei em uma das salas de jantar e saí à varanda.
Além do escudo, projetado da base dos penhascos muito abaixo e se curvando para cima, duas figuras voavam sobre as águas tumultuadas do Mar da Boca Vritra.
O sangue correu do meu rosto, e tive que cerrar os punhos para evitar que tremessem.
Eu conhecia ambos.
As peças logo se juntaram. O Legado devia ter ordenado o bombardeio de Rosaere para atrair Seris, então usou um tempus warp no noroeste de Vechor antes de voar ao sul pelo mar. Se ela sabia que este complexo era a fonte de toda a energia do escudo se estava mirando o lugar apenas porque era a casa e a base de operações de Seris, não dava para adivinhar.
Fiquei imóvel enquanto ela parava, reunindo mana, e levantava as mãos. O trovão soou de novo, um barulho tão grande e terrível que me deixou de joelhos e tampando os ouvidos.
Através do corrimão da varanda, observei as linhas irregulares de luz quente branca se espelhando pela superfície do escudo, feito rachaduras no gelo fino.
Mãos fortes me agarraram sob os braços e me ergueram. Atordoada, lutei para me concentrar no rosto bem diante de mim.
“Caera, ouça com atenção. Evacue quantos você puder e depois avise à comandante Seris. Vá você mesma se puder, mas saia ago…”
Outro trovão. Balancei a cabeça, piscando rapidamente. O rosto de Cylrit enfim entrou em foco, ainda mais pálido do que o normal. Apertando a mandíbula, ele hesitou graças ao barulho, fazendo com que me sentisse melhor e, ao mesmo tempo, pior. Era muito mais assustador saber que ele também estava com medo.
Quando as vibrações ecoaram, arrisquei um olhar para o escudo e fiquei horrorizada ao ver o quão longe as rachaduras se espalharam.
“Caera!” As mãos dele agarraram os lados do meu pescoço com uma firmeza terna. “Eu vou ficar e lutar, mas…”
“Cylrit…” falei, o nome mal saindo dos meus lábios em um sussurro. Ele seguiu o meu olhar arregalado, e juntos observamos o Legado voando ao escudo.
As duas mãos dela empurraram, seguraram e puxaram as rachaduras.
Como vidro quebrando, exceto mil vezes mais corte, a defesa começou a ceder.
O Retentor se lançou à brecha com tanta força que a varanda rachou. Me joguei de volta no complexo assim que as madeiras de apoio se quebraram, derrubando a varanda.
No momento em que me pus de pé, ele havia atingido a barreira, a espada longa negra tão alta quanto ele.
Tudo o que pude fazer era assistir aos dedos do Legado atravessando a barreira transparente, criando um buraco do tamanho de uma mão aberta. O escudo estalou com energia, avançando contra o poder e controle dela para se selar.
Em silêncio, Cylrit empurrou a lâmina com vento na brecha, apontando para o núcleo do Legado.
“Cecil!” gritou a Foice Nico, a voz quase inaudível a mim.
De repente, o Retentor a sacudiu violentamente, tentando se afastar da brecha. Ele estava lutando, contudo, do meu ponto, tudo o que podia ver eram as suas costas. Depois, tirei a minha espada da bainha, todavia, qualquer ataque causaria mais danos ao meu aliado do que à Foice e o Legado.
A barreira saltou para dentro que nem uma bolha distorcida, até que Cyrilt estava fora dela. Foi então que notei as suas mãos vazias; a espada dele havia desaparecido, e o Legado o agarrou pela sua armadura. A seção rachada do escudo voltou à posição e quebrou com um colapso prolongado, como árvores sendo derrubadas por um furacão.
Apesar de ter sido ordenada para fugir, sabia que não poderia. O escudo foi quebrado. O buraco não era grande, talvez oito dois metros e meio de altura e um e meio de largura, no entanto, mais do que o suficiente para uma pessoa passar. Eu era a mais forte presente além do próprio Cylrit. Se fugisse, muitos outros morreriam.
Conforme me levantava, Nico se aproximava após entrar.
Xinguei, e o seu olhar caiu sobre mim. Além dele, o Legado segurou Cylrit com uma mão. Houve um conflito crescente de mana invisível entre os dois. Era mais uma competição de puro controle sobre a mana do que disputa de feitiços. Infelizmente, vi o bastante no Victoriad para entender quem ganharia.
Mas não havia mais tempo para assistir. Ele já estava se movendo em minha direção, voando em uma nuvem cintilante de ar.
Saltando para trás, cortei com a lâmina, enviando uma crescente de chamas negras a ele. Ele foi para baixo, evitando por pouco o fogo da alma.
Tropecei ao completar o balanço corte. O chão havia se liquefeito, somente por um piscar de olhos, e depois voltou a ser sólido, prendendo um pouco os meus pés. No momento em tentei sair da pedra, Nico pousou dentro do arco aberto em frente à varanda quebrada.
Um espinho de ferro do sangue subiu do chão bem abaixo de mim. Me afastei, levantando a espada para desviar um segundo espinho do teto. Já estava respirando com dificuldade, muita dificuldade — muita dificuldade mesmo — quando percebi que cada suspiro me trazia o menor possível de oxigênio.
Ao me virar para pôr a lâmina entre mim e a Foice, a esmeralda na ponta do seu cajado estava brilhando com uma luz radiante.
Ele estava fazendo algo para tirar o ar da sala.
A minha lâmina explodiu em vida com chamas de fogo da alma, e eu a empurrei ao chão arruinado.
As pedras se quebraram quando o fogo devorou o chão debaixo de mim, e caí em cima de uma mesa circular. As pernas dela quebraram, e pulei da superfície em colapso, girando no ar para pousar a vários metros de distância. Felizmente, respirei bastante ar bom.
A sala estava escura, porém, não tive tempo de verificar o entorno.
O chão explodiu para cima, e uma coluna sólida de pedra me arremessou ao teto. Ao mesmo tempo, vários espinhos pretos de metal cresceram como várias tantas estalactites.
Plantando um pé na borda da coluna, me lancei para longe, girando e me envolvendo em uma auréola de fogo da alma. Atrás de mim, a coluna explodiu, enviando facas de pedra sólida pela sala, rasgando tudo no caminho.
O fogo da alma me salvou, queimando todas, exceto uma das adagas, que cortou a minha costela e deixou uma linha de dor ardente. Logo a examinei; era rasa, não perigosa.
Nico apareceu acima, flutuando pelo buraco que fiz no chão. Ergui a lâmina, pronta para me defender do próximo ataque dele.
“Caera Denoir,” A sua voz era tão quieta e fria quanto uma cova. “Gostei de ler as suas muitas missivas. Seris realmente a manteve ocupada, não foi?”
“Se veio me prender, não irei,” respondi, mais para ganhar tempo do que qualquer outra coisa.
Havia uma porta fechada atrás de mim e um arco aberto à direita. Precisava mantê-lo ocupado e esperar que alguns dos outros servos ou guardas conseguissem chegar a Seris. Tinha que ser atenciosa a respeito de como e onde lutava, entretanto. Apesar de que as máquinas abaixo de nós estivessem bem protegidas por grossas paredes de metal e pedra, uma batalha ainda seria perigosa.
E isso nem é levando em conta o fato de que estou enfrentando uma foice, pensei.
Diferente do restante das Foices, pude sentir a sua assinatura de mana e o potencial dela. Estava sendo distorcida de alguma forma — meu olho de novo foi atraído ao cajado estranho na mão dele —, contudo, estava lá, e não era tão forte quanto suspeitei.
“Você ainda não se recuperou da luta contra Grey, não?” Embora não estivesse pronta para apostar a chance de vitória contra uma Foice enfraquecida, o fato de ele ter começado a falar funcionou a meu favor. Quanto mais eu o mantivesse ocupado, mais o nosso povo escaparia do complexo.
A pele pálida dele corou e os seus olhos escuros se estreitaram. “Se me levar a Orlaeth ou à fonte de poder para o escudo deste domínio, Cecilia, o Legado, concordou em poupar você. Recuse ou tente ganhar tempo, e enviarei de imediato uma mensagem aos nossos soldados em Cargidan para começar a exterminar o seu sangue.”
Me senti empalidecer. Possuía pouco amor pelos Denoirs, todavia, não significava que queria todos eles massacrados. “Por que barganhar sendo tão forte? Obviamente, o Legado espera que você seja combatido. Talvez ela não seja tão forte quanto…”
O cajado girou na mão dele, e toda a parede à esquerda foi arrancada e caiu para dentro. Canalizando mana em uma das minhas runas, conjurei uma rajada de vento que jogou o arco à direita. As paredes colidiram ao meu deslizar. O som de pedra e móveis em colapso engoliu todo o resto quando o chão da sala que eu havia acabado de escapar desmoronou para dentro.
Me encontrei em uma pequena câmara ocupada por nada além de alguns bancos em camadas e uma bela harpa que dominava o centro. Me movendo em uma velocidade nascida do desespero e mana de vento, conjurei um punhado de fogo da alma e atravessei a parede externa do complexo e mergulhei pela abertura, as paredes atrás de mim desabando. Balas de fogo líquido assobiaram e passaram por mim enquanto eu me arqueava ao ar livre.
Todo movimento — o mundo inteiro — parecia desacelerar enquanto eu caía.
Girei para que eu conseguisse ver o buraco na barreira. Além disso, o Legado estava se virando, os olhos turquesa se encaixando em mim. Nove metros ou mais sob dela, Cylrit caía de ponta a ponta em direção ao mar e às rochas muito abaixo.
Nós duas nos entreolhamos.
O mundo entrou em movimento mais uma vez. Me virei no ar e agarrei um suporte quebrado da varanda acima, girei em torno dele e me lancei a uma varanda inferior cortada diretamente na lateral da rocha.
Colidi com algo, uma parede invisível, me mantendo longe da varanda. Na velocidade em que me movia, pulei da superfície antes de cair. Esticando o meu ombro, tentei agarrar o corrimão, o que não deu certo. Tentei as barras logo depois, mas falhei e peguei a borda mais baixa da varanda, as minhas unhas marcando linhas nas tábuas de madeira.
Arfando, subi para cima do corrimão em um movimento suave. Atrás de mim, uma nuvem apagou a luz.
O Legado tinha acabado de chegar ao buraco no escudo. Tinha encolhido até o tamanho de uma janela, mas ela estava agarrando os lados e empurrando para fora, o forçando a voltar a abrir.
Uma nuvem escura crescia na frente dela e do buraco, subindo do nada, se condensando e arrastando na mana ao redor. Parecia sugar a cor de tudo à vista, transformando o mundo inteiro em tons de cinza.
Admirada, observei a névoa caindo no Legado. Ela se atirou para trás, abandonando o escudo enquanto se defendia do feitiço. Com cada aceno da mão dela, partes da nuvem eram limpas, todavia, dava para sentir a mana furiosa empurrando, rasgando e puxando de ambas as direções.
A Foice Nico desceu na minha frente, tampando a visão.
“Você é boa em correr,” disse, fingindo um ar casual. Podia senti-lo recuar toda vez que a mana explodia atrás, e cada músculo no seu rosto estava tenso. “Mas eu estava esperan…”
De repente, ele se contorceu e vários espinhos de ferro apareceram, se tecendo para formar um escudo. Em um segundo, um puro jato negro de energia atingiu o escudo, soando que nem um gongo gigante. O ferro de sangue explodiu, e a Foice foi lançada para fora com um grito.
Uma figura, pouco mais do que uma faixa líquida de pérola e preto, passou pela minha visão e pelo buraco encolhido.
Do outro lado, vi a névoa negra desaparecendo. O Legado estava voando a quatro metros e meio do escudo, ilesa. O seu belo rosto élfico estava furioso, e a sua aura horrível fez a própria mana tremer.
Seris pairou diante da fenda no escudo, brilhando na sua armadura negra de escama. Ela manteve a sua indiferença comercial habitual enquanto dizia: “É muito rude aparecer em minha casa sem avisar ou ser convidada, Cecilia.”
“Nico?” gritou o Legado, o seu olhar passando de Seris ao complexo. “Nico, você está bem?”
Me lembrando da Foice, olhei para baixo da varanda. Sem sinais dele.
Quando não houve resposta, a expressão do Legado endureceu, e ela avançou em direção a Seris. “Acabou, Foice. Eu controlo a mana e posso derrubar a barreira. Se submeta e me leve a Orlaeth. Agora.”
“Você está sem fôlego,” falou Seris. Embora eu não visse o seu rosto, dava para dizer que ela estava sorrindo. “Você não tem mais força para lutar comigo. Volte para Agrona e diga que falhou, que tudo que ele sacrificou para trazê-la foi em vão. E fale que estarei esperando aqui se ele quiser falar comigo.”
Uma ondulação passou pelo espaço entre elas, e a boca de Seris se fechou. Ela se inclinou para o que quer que o Legado estivesse fazendo. Linhas escuras de vento vazio a cercavam, flexionando para fora contra a força invisível que a atacava.
Então, começando com Seris e se expandindo rapidamente para fora, uma esfera preta por inteira obscureceu ambas.
Um suspiro irregular escorregou dos meus lábios.
“Ela não pode vencer,” disse uma voz atrás de mim.
Girei, erguendo a lâmina e a envolvendo em fogo da alma. Entretanto, Nico ergueu as mãos pacificamente.
“Não vou te atacar de novo.”
Esperei, observando qualquer sinal de agressão da figura cautelosa e firme dele. A sua mana estava imóvel. Tinha uma faísca de curiosidade nos olhos dele — ou aquela vitória que senti emanando dele era como uma aura?
Um repentino choque de pânico surgiu em mim, e olhei para os escudos. Ainda estavam operacionais. Com certeza ele não poderia ter rompido o complexo em tão pouco tempo, e mesmo se tivesse, os escudos já estariam mostrando o efeito.
“Talvez não, mas o que me impede de te atacar?” perguntei a fim de preencher o silêncio, sem saber a natureza da sua mudança de atitude.
“Isto.” Ele tirou um item de um bolso interno das vestes.
Era uma esfera de superfície áspera maior do que a mão dele, transparente, exceto por um sombreamento roxo claro. Vi núcleos antes, e possuía certeza de que era um, no entanto, era maior do que qualquer outro. Havia algo quase magnético, como se me chamasse.
“Não me importo com esta rebelião,” continuou, puxando o núcleo um pouco mais para perto dele. “Estou não dou a mínima pro Orlaeth ou qualquer outro Vritra. Se fizer algo por mim, vou embora. Vou até te dar tempo.”
Hesitei, então foquei no rosto dele. Tudo o que ouvi seu o enquadrava como um monstro. Um assassino de sangue frio, descuidado e ansioso para cortar qualquer um que Agrona visasse. Agora, olhando para ele, o seu cabelo preto agarrado à testa, os olhos escuros furiosos e suplicando, ficou notório que era apenas um menino.
“O quê?”
“Pegue este núcleo,” disse, o estendendo de volta para mim. “Dê para Arthur Leywin — Grey — no outro continente. Diga a ele…” Ele fez uma pausa, e um olhar de dor cruzou o seu rosto. “Diga a ele que ele tem que salvá-la. Ele deve a ela uma vida.”
Franzi a testa, incerta. “Eu não entendo.”
Ele deu um rápido passo à frente, sem ligar para a lâmina apontando a garganta, e ofereceu o núcleo a mim. A minha espada cortou a lateral do pescoço dele, desenhando uma linha fina de sangue na sua pele pálida e doentia.
“Pegue e fale com ele.”
Lentamente, tirei uma mão do cabo da espada e peguei o núcleo gelado. “O que isso tem a ver com Grey?” Arthur Leywin. “Quem é ‘ela’? O Legado?”
Nico deu um passo para trás, a mandíbula tensa. “Estou confiando a você a coisa mais importante do mundo inteiro.”
Antes que eu o pressionasse ainda mais ou pensasse em recusar e lançar o núcleo no rosto dele, ele tirou o cajado das costas e lançou um feitiço para se envolver no vento, saindo do complexo em direção à esfera negra e desaparecendo naquelas profundezas impenetráveis.
Agarrei o núcleo e olhei para a escuridão abissal. Não só não via nada, como também não sentia nada. Era como se Seris — ou o Legado, pensei com um arrepio, tivesse esculpido um pedaço do mundo e deixado para trás apenas um pedaço vazio de nada.
Quando me perguntei por quanto tempo alguém poderia manter tal feitiço, a esfera explodiu.
A escuridão engoliu toda a luz, e por um momento de parar o coração — um único suspiro que parecia uma eternidade —, fiquei cega por completo.
Tão rápido quanto, o preto derreteu de volta à luz e à cor. Caí contra a parede e olhei para onde Seris e o Legado estavam.
Dentro do escudo, Seris estava pendurada no ar, um braço segurando o outro. Em frente a ela, bem fora da barreira transparente, Nico apoiava o Legado, que se inclinou nele. Um olho turquesa louco olhou para fora. Ao contrário de Seris, contudo, a elfa não tinha sinais de ferimentos físicos. Entre eles, o escudo estava mais uma vez completo e imaculado, nenhum sinal da fenda de antes.
Nico começou a afastar o Legado, e ela o deixou. No último momento, ele desviou o olhar e, por um único instante, nossos olhos se conectaram. Então os dois estavam se afastando em alta velocidade.
Seris os observou ir até que desaparecessem de vista para o leste antes de enfim vir a mim. Parecia cansada demais, mesmo considerando que estava no fim do seu poder.
“Desça e verifique o conjunto de baterias,” resmungou. “E peça aos técnicos que criem uma abertura perto da base dos penhascos. Preciso encontrar o meu Retentor.” Ela estremeceu ao olhar para a água abaixo.