O Começo Depois do Fim
Capítulo 403: Alto-Sangues no Baixo
Caera Denoir
Pesadas nuvens negras transformaram o dia em noite, despejando uma espessa chuva nas ruas de Aensgar na Redwater. A cidade estava estranhamente quieta, o som do gotejar sendo quebrado apenas pelas rodas da carruagem sobre os paralelepípedos ou pelo raro grito de uma alma azarada apanhada na tempestade correndo.
Tive quase uma semana para chegar a um acordo com os eventos em Sehz-Clar, porém o ritmo apressado de Seris deixou pouco tempo para pensamentos contemplativos. Ainda assim, sabia o que estava em jogo e quase me encontrei apreciando a fuga, apesar do perigo de estar fora dos escudos.
Encontrando a rua que procurava, puxei mais o capuz do meu manto e envolvi minha assinatura de mana antes de contornar o exterior de uma grande pousada de três andares com cuidado. Luz fraca passava por painéis amarelados de vidro, combinando com as risadas e conversas de bêbados além da porta.
Examinei o beco atrás do edifício, que apenas tinha o lixo jogado pela equipe muito ocupada.
Deslizando ao longo da parede traseira, parei na alcova estreita da porta dos fundos e esperei, observando a rua. Ninguém apareceu, e a trilha permaneceu vazia, exceto pela água escorrendo. Confiante de que ninguém me seguiu, abri a porta e entrei no escuro.
Cheguei a um corredor apertado. De um lado, o barulho do bar vibrava através das tábuas finas; do outro, portas se abriam para os depósitos e aposentos privados do proprietário.
Uma vez que passei, ouvi sussurros sutis vindo de uma sala no fim do caminho.
Cautelosamente me aproximei da última porta, e as vozes ficaram mais altas até que pudesse distinguir as palavras ignorando o barulho externo. Um pouco de luz saía de um espaço entre duas tábuas na parede, e, quando olhei, consegui ver um pedaço da sala, incluindo vários alto-falantes.
Eu poderia rir.
Cada um dos homens visíveis do meu ângulo se vestia com mais ostentação do que outro. Era uma maravilha que não tivessem chegado acompanhados por pessoas ensanguentadas, servos e bestas de mana capturadas. Podiam ser perdoados por pensar que um encontro clandestino como este requeria boas vestimentas, contudo, pelo visto, esses alto-sangues não resistiriam à oportunidade de ostentar para eles mesmos.
Para dar algum crédito a eles, havia uma fileira de capas encharcadas de chuva penduradas em ganchos no canto.
“O emissário da Foice Seris Vritra está atrasado” disse um homem mais velho. Seu cavanhaque loiro espesso era quase branco, todavia notei seus olhos feito aço quando olhou ao redor. Lorde Uriel do alto-sangue Frost, pensei, o reconhecendo de imediato.
Outro bem mais jovem, de cabelos escuros e peito estufado, riu baixo. “Lorde Frost, esta é uma Foice que estamos discutindo.” Tamborilou os dedos na mesa arranhada dos fundos. “Embora, suponho que esse título não seja mais apropriado. De qualquer forma, seu representante chegará e pedirá desculpas na hora. A verdadeira pergunta é por que escolheram um lugar tão podre e escasso.”
As sobrancelhas grossas do Frost se ergueram ao considerar as palavras. “Suponho que esteja certo, lorde Exeter. Embora, se Foice… ah, a senhorita Seris espera ganhar nossa boa vontade, talvez deva começar a nos tratar melhor do que seus compatriotas anteriores.”
Uma voz feminina fria pertencente a alguém não visível por mim interrompeu, falando:
“Ah, sério, Uriel? Quando você foi mal tratado na vida? Nascido um alto-sangue e herdeiro do título de senhor, seu sucesso e autoridade foram quase predestinados. Você ouviu a parábola da colher de prata, presumo?”
Havia vários escândalos dos homens à frente.
Lorde Frost assumiu uma expressão que teria congelado o sangue da maioria dos alacryanos, apesar da voz suave. “Alguns de nós tiveram a boa sorte de nascer em nossa posição, enquanto outros lutaram e sangraram para trilhar por cima da escória dos sem sangue. Mas agora somos todos alto-sangues, matriarca Tremblay. E todos estão aqui por um propósito em comum. Suspeito que se as interações do seu sangue com as Foices e Soberanos fossem positivas, não teria respondido ao convite de Seris.”
“Bem dito, Uriel” falou um dos outros, mais jovem e com um rabo de cavalo apertado, de costas para mim.
“Oh, de fato” respondeu ela, o provocando. “Um modelo absoluto de nobreza.”
Me afastei da rachadura da parede e fui em direção à porta, decidida a aparecer antes que as coisas piorassem ainda mais.
“Se tem alguma queixa contra mim ou meu sangue, Maylis, diga.”
“Não ligue para ela, lorde Frost. Esses recém-sangues não apreciam os que vieram antes” disse o Exeter.
Abri a porta e vi uma mulher alta e atlética se levantando, um dedo estendido àqueles do outro lado da mesa e a boca aberta para proferir, sem dúvida, um insulto eloquente. No entanto, seus olhos cor de vinho focaram em mim, brilhantes e grandes demais para seu rosto bronzeado, e parou.
“Caera?” perguntou com incerteza.
Me concentrei nos chifres curtos na sua testa se curvando para trás sobre seu cabelo azul-escuro lustroso puxado para trás. Ela continha sangue Vritra, mas seu sobrenome, Tremblay, não era familiar. Tardiamente, percebi que já ouvi o seu primeiro nome.
“Maylis…” Tive um vislumbre de uma versão muito mais jovem da jovem feroz agora parada, uma adolescente magríssima cujo cabelo alcançava os joelhos. “Vejo que seu sangue se manifestou.”
Ela assentiu com energia, claramente animada e ansiosa para falar, entretanto os homens se puseram de pé, e nós duas percebemos que não era hora para conversarmos. Apagando o sorriso, se sentou de volta.
Do outro lado do cômodo, alguns me reverenciaram por obrigação, mas a maioria olhava com cautela.
Somente lorde Exeter se aproximou, rápido, para estender a mão. Fui apertar, contudo ele virou a minha e puxou. Só pude assistir, surpresa, perplexa e um pouco irritada, ele beijar a parte de trás da minha luva.
Maylis bufou.
“Pela graça dos Soberanos, senhorita Caera do alto-sangue Denoir, o que está fazendo aqui?” perguntou, me observando.
“Não é óbvio?” Um ofegante alto-sangue gordo e careca de robes roxos e prateados. “Isso é uma armação! Os Denoirs já se manifestaram vocalmente contra a situação em Sehz-Clar…”
Um riso de Frost cortou o seu discurso no meio. “Que, imagino, alto-sangue Seabrook, é o motivo para esta garota estar aqui, em vez do herdeiro, Lauden, ou o próprio lorde Denoir. Jogando dos dois lados, imagino.”
Analisei com um olhar frio e passivo a sala. “Esta ‘garota’ está aqui porque a própria Seris me escolheu para compartilhar sua mensagem. Eu sou o emissário que estavam esperando.” Me concentrei em Sebastien Seabrook. “E, senhor, se fosse algum tipo de armadilha, já teriam se incriminado por completo com sua surpreendente imprudência.”
Ao meu lado, Exeter ficou pálido que nem um fantasma e deu um passo para trás, batendo na mesa, antes de murmurar algo incoerente. “Espera, o quê?”
“Qual é o problema, Zachian? Estava bem ansioso para se apresentar como um egocêntrico vazio e indulgente apenas um momento atrás” falou Maylis, sorrindo.
Ele endireitou a jaqueta e empinou o nariz. “Perdoe-me, senhorita Denoir. Interrompi a reunião. Por favor.” Acenou para eu entrar, então lançou um olhar fulminante para Maylis antes de retornar ao seu assento.
“De fato, parece que escapamos um pouco do nosso propósito” afirmou Frost no silêncio que se seguiu. “Se veio mesmo em nome dela, me diga, o que exatamente ela espera realizar com esse ato de rebelião?”
Essa pergunta possuía mais a intenção de nos levar a uma conversa do que obter uma resposta real. Cada um deles já havia recebido uma série de cartas que ofereciam uma explicação para o propósito de Seris. Sabiam o que ela estava tentando fazer, mas o que queriam era avaliar se havia uma chance de que saísse vitoriosa. E, talvez o mais importante para eles, o que custaria aos ricos se alinharem com ela contra Agrona.
“Sentem-se, e responderei a quaisquer perguntas sensatas que possam ter.” Fui firme, mantendo minha presença equilibrada e confiante, todavia não rígida.
Em boa parte das vezes, em uma sala com tantos alto-sangues, o comportamento cortês que meus pais adotivos enfiaram em mim teria sido bom, porém não vim para dialogar com as maquinações típicas nobres. Se me vissem como inferior ou até seu igual, seria quase impossível alcançar meu objetivo.
Apareci como emissária de Seris, e ela tinha grandes expectativas.
Delicados, encheram a longa mesa lascada e manchada. Havia oito representando vários sangues que mostraram interesse na mensagem de Seris. Fiquei de pé com as mãos entrelaçadas atrás das costas e deixei a leve impressão de impaciência surgir em meu rosto.
Lorde Exeter foi rápido em se sentar no meio, olhando Maylis. Embora parecesse calmo, eu podia sentir seu temperamento quente. Nunca ouvi falar do alto-sangue Exeter, entretanto, pela maneira como zombou dela por ser um “sangue novo”, duvidei que o seu próprio tivesse se formado agora. Era provável que seu sangue fosse um regular de Sehz-Clar ou Etril, honrado devido à quantidade de terra que conseguiram adquirir em vez de força na guerra ou sucesso com ascendentes.
Frost se sentou à cabeceira da mesa. Conheci vários de seu sangue na Academia Central, e os Frosts faziam negócios ocasionais com os Denoirs. Fiquei bastante impressionado com a bisneta dele, Enola, que havia vencido no Victoriad.
Seabrook, o homem cheio e cansado, se sentou à sua esquerda, olhando para mim e mastigando sua bochecha de uma maneira distraída.
À esquerda dele estava o segundo filho dos Umburters, cujo nome de batismo não conseguia lembrar. Seu irmão, eu sabia, estava em Dicathen cuidando dos assuntos do sangue. O fato de ele estar aqui em vez de seu pai, Gracian, sugeriu que estavam assistindo de longe. Pelo menos os Exeters enviaram o herdeiro deles.
O Umburter era meio metro maior que o idoso ao lado dele, Geoffrey Clarvelle, o camareiro da matriarca. O sangue Clarvelle era próximo dos Denoirs quando eu era menor, contudo alguns desentendimentos entre minha mãe adotiva e a matriarca Clarvelle resultaram na separação deles. Como camareiro, ele era um membro confiável da família, mas enviá-lo para uma reunião dessas era quase um insulto declarado.
Tinhamos que tomar cuidado com eles.
Do outro lado, o lorde Ector Ainsworth se sentou à direita do Frost. Aos sessenta anos, ainda tinha cabelos escuros, exceto por uma leve ruga na testa e em cada lado de seu cavanhaque preparado com cuidado. Estava quieto até agora, tanto antes da reunião quanto desde quando cheguei, todavia seus inteligentes olhos cinzentos aparentavam tentar olhar além de mim.
Ao lado, aquele que estava de costas para mim quando parei no corredor, agitado e nervoso, mexia nas dobras de suas vestes. Ele continuou olhando para o lorde Frost como se estivesse tentando chamar sua atenção. Reconheci o seu nariz aquilino e olhos incomuns; um era escarlate brilhante, o outro um marrom enlameado.
“Senhorita Caera…” disse ao me perceber o observando, apesar de seus olhos estarem se concentrando na mesa.
“Lorde Redwater.”
Wolfrum do alto-sangue Redwater era um adotado com sangue Vritra que nem eu. Seus irmãos adotivos — quatro homens e uma mulher — morreram de um jeito trágico nas Relictombs. Visto que seu lado Vritra nunca se manifestou, os Redwaters foram autorizados a nomeá-lo herdeiro para que o seu sangue, que foi chamado assim em homenagem ao rio a menos de um quilômetro do lugar, a viver.
Eu o conheci, como Maylis, nas “reuniões” de crianças adotadas de sangue Vritra que fui forçada a frequentar quando jovem. Me lembrei dele como um garoto desajeitado e antissocial que se destacava.
“Antes de começarmos, há dois pontos que quero esclarecer. Primeiro, esta não é uma batalha para substituir um Soberano por outro. Seris não busca se tornar a Alta-Soberana de Alacrya e nem governar.”
O Seabrook revirou os olhos e olhou para o Ainsworth com um sorriso tolo no rosto.
Frost cruzou os dedos e se inclinou para mim. “Então, as cartas dela explicaram. Até agora, ela disse ser uma… combatente da liberdade, liderando esta revolta para o bem dos alacryanos.” Wolfrum riu desajeitadamente, mas ficou quieto após perceber que era o único. “Eu pediria que você falasse com clareza, em sua honra como uma Denoir. Qual é o verdadeiro propósito de Seris e por que agora, neste momento turbulento?”
“Isso tem algo a ver com a súbita reviravolta que está acontecendo no outro continente?” Seabrook explodiu. “Perdi dez grupos de batalha na cidade de… bem… seja lá qual for o nome.”
“O segundo ponto que sou instruída a deixar claro” continuei, ignorando as perguntas por ora. “… É que isso não é uma resistência simbólica. Por que agora, lorde Frost? Porque é a nossa última oportunidade.” Pus as mãos na mesa e olhei para cada um deles. “A guerra iminente com os outros clãs asuras acabará com nosso mundo se não a impedirmos.”
Um coro de vozes estourou quando Umburter, Seabrook, Exeter e Frost tentaram falar ao mesmo tempo.
“… Absur…”
“… Ter certeza…”
“… Parar com isso, mesmo que…”
“… Acredito em uma palavra desse absurdo!”
Bati forte no móvel, o rachando, o que acalmou eles, embora tenha atraído olhares hostis de Umburter e Seabrook.
“Tenham a mesma etiqueta que teriam em seu próprio sangue. Não me interrompam de novo.”
Esperei alguns segundos antes de continuar. “Há poucos que podem alegar conhecer a mente de Agrona Vritra; Seris é uma deles. Ele queimará este mundo e nós para retornar à terra dos asuras. O resto dos Foices e Soberanos estão preparados para segui-lo, mas Seris não está.”
“E, se vocês, bons senhores, me derem licença” disse Geoffrey com sua voz profunda. “… Qual é o papel do desaparecimento dos Soberanos Orlaeth e Kiros Vritra nesta rebelião? Ouvimos todos os tipos de rumores estranhos.” Seus olhos afiados se estreitaram enquanto me observava de perto em busca de uma resposta. “Até ouvi dizer que Seris de alguma forma estava os assassinando… com a ajuda do homem de olhos dourados do Victoriad.”
Estava pronta para a pergunta e a menção a Grey. Ninguém parou de falar a respeito da sua aparição repentina. Havia também aqueles que suspeitavam que ele tinha algo a ver com a destruição em Vechor, por mais que fontes oficiais tenham alegado que foi um trágico acidente com um artefato das Relictombs.
“O Soberano Kiros está agora acorrentado sob o Taegrin Caelum.” Cruzei os braços. “Quanto ao Soberano Orlaeth, bem…” Seris não estava muito pronta para deixar a verdade completa sair, temendo que, se a notícia voltasse para Agrona, de alguma forma o ajudaria a desativar as defesas dela. “Apenas saibam que ele foi incapacitado, mas não morto.”
Os alto-sangues reunidos olharam um para o outro, as expressões incrédulas. Ainsworth se mexeu, Frost se recostou, fazendo a cadeira ranger. Umburter tirou uma lasca do lado da mesa e franziu a testa, enojado.
“O que Seris quer conosco?” perguntou Maylis. Ela estava reclinada de volta na cadeira de madeira, uma perna cruzada sobre a outra, e as pontas dos dedos mexendo no punho dourado de uma adaga.
Seabrook gritou: “Soldados, obviamente”, antes que eu pudesse responder.
“Não, ela precisa de legitimidade” respondeu Ainsworth. Foram as primeiras palavras que falou desde que apareci. “Apoio para estabelecer que isso é mais do que uma rebelião destinada a um fim súbito e violento.”
“Mas é?” questionou Wolfrum, olhando para Frost em busca de apoio.
O mais velho e atlético assentiu para ele. “O jovem Redwater faz uma boa pergunta. Não sou tão covarde a ponto de me recusar a dizer em voz alta que este continente tem problemas extensos; a realidade é que somos governados por literais divindades. Todos nós vimos transmissões intermináveis dos destroços que os ataques asuras deixaram em Dicathen. E o Alto-Soberano tem muitos Vritra sob seu comando, cada um capaz de esmagar exércitos inteiros. Não tem como enfrentar isso.”
Agarrando a cadeira mais próxima, me sentei, apoiando os braços no encosto. “Fico feliz que você saiba que os castelos em que vivemos são feitos de areia.” Esta proclamação foi recebida com outra rodada de olhares e murmúrios trocados. “Carinhosamente trabalhados e bonitos, talvez, mas apenas porque um Soberano ainda não decidiu derrubá-lo. De que adianta o seu sangue se um deus irritado e irracional pode derrubá-lo com um suspiro e esquecê-lo no próximo?”
Maylis ficou imóvel, seu corpo carregando a tensão de uma mola, apesar da postura relaxada. Umburter olhou para as mãos, o rosto pálido.
“E também, o Alto-Soberano não quebrou o escudo ao redor do oeste de Sehz-Clar ou massacrou Seris, e a cada dia outra cidade em Dicathen cai, tomada de volta pelo povo do continente. Seu controle já está escorregando.”
“Você perguntou sobre o homem de olhos dourados” disse, encarando Seabrook. “Não, ele não tem se esgueirado por Alacrya decapitando Soberanos, pois é ele quem vem retomando sozinho Dicathen, assim como foi ele quem queimou o acampamento militar ao norte de Victorious.”
Exeter soltou um assobio baixo. “Então é verdade? O ascendente Grey é de dicatiano?”
“Ele veio ao nosso continente para dominar as Relictombs. E conseguiu.”
Maylis ficou chocada. “Mas o que isso significa, Caera? Dominar as Relictombs?”
“Simples.” Meus lábios se curvaram em um sorriso indiferente. “Dominar as Relictombs significa dominar o éter.”
Esta era uma das partes mais difíceis. Seris queria que essas pessoas vissem Grey como algum tipo de herói de contos, mais mito do que homem. Mesmo considerando tudo o que o vi fazer, no entanto, era difícil para mim pensar nele dessa forma.
“Em todas as suas ascensões, já viram alguém que possa navegar em qualquer lugar que quiser nas Relictombs?” perguntei, ainda focada nela.
“Isso é impossível” falou de imediato.
“Ou, lorde Frost, já viu um ascendente receber uma nova runa sem uma consessão?”
“Não” disse devagar, como se considerasse suas implicações.
“Eu, já. Porque estive ao lado dele em muitas zonas e o vi fazer essas coisas e muitas outras além disso.”
O olhar de Chamberlain Geoffrey estava muito longe, entretanto, do outro lado da mesa, Wolfrum não desviava o olhar de mim. “Então, o que meu amigo em Taegrin Caelum me disse…”
“As Assombrações?” perguntei, e todos se voltaram para ele, fazendo-o se encolher. “Conte a eles o que aconteceu.”
Seu olhar disparou por toda a mesa enquanto respirava fundo, obviamente se preparando para qualquer outra coisa que tivesse a dizer. “Ele disse… bem, havia rumores de que… um grupo de batalha de Assombrações” sussurrou a palavra. “… Foi destruído no outro continente.”
“Mas são um conto de fadas; um…” Umburter começou a dizer, contudo Wolfrum o interrompeu com um aceno violento de cabeça.
“Eles não são! Os Redwaters, eles… queriam que eu fosse um, quando meu sangue se manifestasse. Apenas…”
Seabrook pigarreou. “Está sugerindo que esse tal de ascendente Grey as matou?”
“É verdade” respondeu Ainsworth. “Eu tinha homens naquela batalha, um deles meu próprio sobrinho. Ele descreveu como as Foices estavam esmagando os generais do inimigo quando uma magia terrível foi desencadeada ao longe com a aparição de um homem de olhos dourados jogando um chifre Vritra para todos verem, fazendo com que Melzri e Viessa recuassem se curvando.”
“Elas se curvaram pro homem?” irrompeu Geoffrey, escandalizado.
Mais uma vez, todos se interromperam, no entanto deixei o momento continuar.
“Vocês todos viram por si mesmos o que ele fez no Victoriad. Sozinhos, exércitos não podem lutar contra asuras. Mas com um homem como Grey os liderando…”
Deixei as palavras se prolongarem. Esperava que alguém discutisse, alegasse que um estrangeiro não poderia liderar os alacryanos, ou que estaríamos apenas substituindo uma divindade autoritária por outra, mas, para minha surpresa, não foi a resposta que recebi.
“Oito grupos de batalha voltaram pro meu sangue antes que os teleportadores fossem desativados” disse o Exeter, sua voz baixa agora suave. “Todos compartilharam a mesma história: ele deu uma escolha, várias vezes, de voltar para casa em vez de morrer.”
“Parece oito grupos de covardes para mim.” Bufou Seabrook.
Exeter assumiu uma carranca violenta.
“Eu ouvi o mesmo de vários outros” apontou Ainsworth, seu foco também em Seabrook. “Pelo visto, nosso inimigo é mais gentil com a vida de nossos homens do que nossos próprios líderes.”
Fiquei de pé, dando um passo ao redor da minha cadeira até Exeter, as pontas dos dedos da minha mão direita se arrastando ao longo da borda da mesa. “Sabem qual é a palavra asuriana para nossa espécie?” Ninguém respondeu. “Menores.”
Frost me observou pensativo. Ao seu lado, Ainsworth investigou a mesa com cicatrizes como se fosse um mapa de batalha. Os olhos incompatíveis de Wolfrum me seguiram, não mais saltando em torno dos outros. Seabrook ficou em silêncio; Umburter sem foco, parecendo perdido, e Exeter também. Geoffrey estava inclinado, batendo nos lábios com um dedo, contemplando tudo o que foi dito. Maylis tinha a face estóica de alguém que olhava para o rosto da morte com frequência e lutava todos os dias.
“Para os Vritras, não tem diferença entre o mago de alto-sangue mais poderoso e o mais humilde sem sangue e adornos. Para eles, vocês são todos menores, e isso é tudo o que qualquer um de nós será. E como menores, nossas vidas são tão valiosas que podem ser trocadas; sacrificadas. Mercadorias.”
Umburter estava acenando com a cabeça agora. As bochechas de Seabrook ficaram vermelhas feito vinho.
“Seris não se contenta em deixar os menores serem queimados para uma guerra de asuras. Não estou contente, Grey não está, então vamos lutar juntos para garantir que vocês não sejam tão mal utilizados.” As mãos de Frost se fecharam; um sorriso bobo e bêbado brotou no rosto de Wolfrum. “Mesmo que vocês não ajudem” terminei sombriamente.
Até o bar da pousada pareceu ficar quieto por um momento.
Através do silêncio, os senti: várias assinaturas poderosas de mana se aproximando.
Ninguém mais havia sentido, porém Maylis deve ter percebido a tensão repentina em mim, pois se levantou e apoiou a mão na adaga. “O que foi?”
“Magos poderosos.” Eu examinei os rostos deles, tensos, esperando que eu desse uma ordem. Não precisava que me dessem mais nenhuma indicação de apoio; aquele momento de servidão desses homens decisivos e comandantes revelou como a percepção de poder mudou dentro da sala.
“Vão” falei, e todos começaram a se mover.
O jovem Lorde Umburter jogou uma capa em volta dos ombros, e, de repente, me vi piscando sem parar, não podendo mais me concentrar nele. Por mais que simples, a capa estava encantada para que tirasse dele qualquer atenção.
Os outros tinham acessórios mágicos semelhantes para mantê-los seguros e despercebidos, contudo, não esperei para analisar cada um.
Abrindo a porta devagar, espiei antes de sair. Não havia ninguém, então corri em direção à porta dos fundos. No meio do caminho, um braço deslizou pelo meu. Surpresa, me afastei antes de perceber que era Maylis.
Sorrindo, pegou uma garrafa de licor vermelho profundo de uma prateleira, puxou a rolha com os dentes e bebeu. Quando me surpreendi, ela deu uma risada estranha. “O quê? Somos apenas velhas amigas se encontrando para uma bebida nestes tempos incertos. Vamos lá.”
Então ela estava tentando derramar a bebida na minha boca, rindo o tempo todo.
Depois de nos recuperarmos do meu quase afogamento por bebida, saímos pela porta, não em silêncio, e sim com ela a chutando na noite fria. O ar ainda cheirava a chuva, apesar de a tempestade ter parado.
De braços dados, saímos do beco e ela me guiou para a direita.
“Você sabe, Caera, estou muito surpresa que seu sangue nunca tenha se manifestado” disse, a respiração meio ofegante. “Dos de sangue Vritra que conheci no passado, você parecia a mais focada.”
Senti uma onda de culpa por dentro, todavia era uma verdade que Seris e eu ainda não estávamos prontas para contar a ninguém. “Tenho certeza de que meus pais adotivos concordariam com você, embora surpresos e desapontados.”
Atrás de nós, senti as assinaturas de mana parando em algum lugar ao redor da pousada. Minha mana ainda estava suprimida, e pude sentir que Maylis havia tomado a mesma precaução.
Ela riu e me entregou a garrafa. Dei um gole. “Há quanto tempo o seu se manifestou? Não me lembro de ter ouvido falar do alto-sangue Tremblay antes.”
“Quatro anos.” Me puxou para o lado para que não passássemos por uma grande poça. “E não estou surpresa. Depois que me manifestei, passei algum tempo, uns três anos e seis meses, para ser exata, treinando em Taegrin Caelum e sendo cutucada por cerca de quarenta pesquisadores diferentes. O que quer que estivessem procurando, porém, eu não deveria ter. Seis meses atrás, por aí, me mandaram embora com o novo nome e título de matriarca Tremblay. Agora tenho propriedades, terrenos e servos… Bem, é uma mudança e tanto.
“Mas você ainda vai em ascensões” afirmei, certa por sua reação anterior de que ela não era estranha às Relictombs.
Seu sorriso de resposta foi irônico. “Para o caralho do desgosto de todos. Não vou ficar sentada o resto da vida.” De repente olhou para mim com um olhar malicioso. “Então, esse cara, o Grey… Vocês tiveram muito tempo sozinhos, não?” Suas sobrancelhas se mexeram para cima e para baixo, me lembrando de Regis, por algum motivo estranho. “Só vi as transmissões, mas ele parecia bem gostoso… “
Me senti ficar vermelha quando percebi o que ela estava insinuando. “Maylis! Você realmente tem muito a aprender a respeito de etiqueta…”
Meu constrangimento só a fez rir mais.
Continuamos assim por alguns quarteirões, então ela me soltou. “Quem quer que sejam esses magos, não parecem estar nos seguindo. Que pena, porque eu não me importaria de lutar.” Sorriu, me empurrando com alegria quando comecei a protestar. “De qualquer forma, estou indo nessa direção. Espero que nos vejamos em breve, Caera. Parece que as coisas estão prestes a ficar realmente interessantes aqui em Alacrya.”
“Espero que possamos confiar no alto-sangue Tremblay para obtermos apoio” falei de um modo mais formal. “… Porque ‘interessante’ não é a palavra que eu escolheria para os tempos à frente, e me sentiria melhor os enfrentando com você do nosso lado.”
Ela riu, barulhenta e despreocupada. “Sempre tão focada, como eu disse. Adeus, Caera.” Ela se afastou a passos longos. “Ah, claro, não morra.” Olhou por cima do ombro antes de mergulhar nas sombras de uma rua sem iluminação.
A alegria desapareceu, suas palavras evocando uma melancolia cautelosa em seu lugar. “Darei o meu melhor” disse para mim mesma, me virando para correr em direção ao tempus warp do beco que usaria para retornar à fronteira leste de Sehz-Clar, fora dos escudos asurianos.
Fiquei alerta da figura me acompanhando, por mais que não pudesse ter certeza se já estavam lá antes e não notei ou se apareceram. Não apressei o ritmo, mas mantive uma marcha constante enquanto minha mente acelerava. Sua assinatura de mana não era avassaladora, porém poderia ser um mago mais forte suprimindo sua presença, um batedor ou um espião enviado para me rastrear até meu destino ou manter outros magos mais fortes informados da minha localização.
Após alguns minutos, me afastei do trajeto, atraindo meu perseguidor para uma área residencial bem lotada com uma linha de visão limitada.
Depois da minha terceira volta, parei e desembainhei minha espada. Quando a figura deu a volta na esquina, o aço escarlate parou em sua garganta. Olhei para a sombras sob o capuz, entretanto era muito profundo e escuro, escondendo seus traços.
“Não se mexa” ordenei. “Diga seu nome e propósito agora.”
Ele estava imóvel, as mãos estendidas para os lados. Por baixo do manto, uma voz rouca e crua se mostrou. “Posso mexer meus lábios ou… bem, supondo que não posso, acho que seria tarde demais para mim de qualquer maneira. Mas, como não me matou ainda, creio que posso.”
Meu rosto se fechou, confusa. “Quem é você e por que está me seguindo?”
Lentamente, as mãos foram pros lados do capuz, o puxando para baixo, revelando um velho robusto com cabelos grisalhos médios e uma barba bagunçada.
“Senhorita Caera” disse a figura familiar, seus olhos quase pulando enquanto tentava olhar para a ponta da lâmina.
“Alaric” respondi, arrancando o nome das profundezas da mente. “A que prazer devo uma visita tão desprezada do tio falsificado de Grey nesta bela noite?”
“Quase que tenho um treco vendo você oferecendo chazinho para aqueles nobres presunçosos.” Riu, e seus olhos vítreos ficaram mais escuros. “Não será o suficiente, moça. Não, se quer fomentar uma rebelião, precisa ir bem mais baixo.”
Retirei a lâmina, mas não a guardei. Minha mente girava com tantas perguntas que queria fazer. Eu não conhecia esse homem bem e tinha apenas sua tênue conexão com Grey para ter certeza.
“Continue.”
Ele sorriu, exibindo dentes amarelados. “Precisa de amigos em lugares ferrados. E ninguém tem mais amigos, e nenhum mais lascado da vida, do que eu.” Hesitou; havia um brilho em seus olhos. “Meu serviço só vai te custar uma garrafa de hidromel para a caminhada.”